quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Em tempos de Francisco...




A visita do Papa Francisco I ao Brasil tornou a religião Católica e as questões de natureza religiosa tema recorrente em todas as mídias. Assim, não podia perder a oportunidade de falar sobre leitura e viagens relacionadas ao homem que inspirou o Cardeal Jorge Mario Bergoglio na escolha do seu nome como sucessor de Pedro.

São inúmeros os livros, textos e filmes que tratam da vida do criador da ordem dos frades menores. Quem não assistiu Irmão Sol, Irmã Lua ou não escutou músicas e referências ao papel revolucionário que Francisco de Assis teve para a Igreja Católica durante o século XI e que ainda tem.

Recentemente tive a oportunidade de ler o interessante livro São Francisco de Assis – O homem por trás da lenda, de Augustine Thompson. Mais que um texto romanceado sobre a vida do famoso santo, neste livro, o autor, que é um padre dominicano com Doutorado em História Medieval, procura, com base em uma séria pesquisa histórica, retratar da melhor maneira possível a vida de Francisco e a Europa em que ele vivia, no intuito de separar a história da lenda.

Nesta trilha ele nos apresenta a família de Francisco em Assis e como devia ser a vida social de uma cidade na península italiana daquela época, com suas guildas, suas festas e como seria a vida “dissoluta” do jovem Francisco, filho de comerciantes emergentes e com dinheiro naquela cidade, no capitulo “Quando andava em Pecados”.


Com base nas informações e dados disponíveis ele narra a fracassada experiência militar de Francisco na batalha de Ponte San Giovanni, mais um capítulo da guerra entre Assis e Perugia durante o século XI, quando nosso futuro santo caiu prisioneiro das hostes inimigas e assim permaneceu por quase um ano até que sua família pagasse o resgate e de como – aí especulação do autor – esta experiência frustrada pode ter sido decisiva para que Francisco di Bernardone abandonasse os sonhos de se transformar em heróico cavaleiro e se encaminhasse para uma vida mais espiritual.

Do mesmo modo o autor tenta explicar – a partir da compreensão de como se organizava a sociedade da época – a famosa história do abandono da família e da opção pela pobreza como resultante do desinteresse de Francisco pelas coisas mundanas e o medo, de seus pais, que sua dedicação à caridade e à recuperação de igrejas e pequenos templos pudessem arruinar a fortuna tão duramente conquistada.

Entre outras coisas, o autor desmistifica a crença de ser Francisco o autor da famosa Oração da Paz – aquela do “Senhor fazei-me instrumento de vossa paz” – entendendo de que dificilmente um homem do seu século colocar-se-ia em outra posição em relação ao Senhor que não fosse de obediência, de objeto da vontade divina, não em sujeito de transformação. Ainda de acordo com Thompson, fontes históricas apontam que a oração foi composta originalmente em francês por autor desconhecido e datada do início do século XX, de 1912 para ser mais preciso.

O autor também explora o sofrimento de Francisco devido à contradição que nascia, necessariamente, de um homem que queria ser o menor dos menores, mas era, ao mesmo tempo, o líder de uma congregação que se iniciara com poucos seguidores em Porciúncula e que quando já estava perto do fim de sua vida havia sido reconhecida por Papas e Bispos e atraia milhares de religiosos que olhavam para ele como um líder, aquele que estaria acima de todos e os guiaria. Como um maior podia ser menor?

De acordo com a narrativa de Thompson, Francisco sofre com este paradoxo, enquanto desfilam pelo texto outros santos conhecidos da história da Ordem, como Santa Clara e Santo Antônio de Pádua e outros que forjaram os franciscanos como eles hoje são.

Ficamos sabendo, entre outras coisas, que Antônio de Lisboa (depois de Pádua) só tem sua sólida formação aproveitada pela ordem depois que Francisco revê as suas regras e o Papa Honório III baixa o regramento que possibilita que seus seguidores possam ambicionar aprender mais e crescer na carreira eclesiástica. Inicialmente tal aspiração era vista por São Francisco como manifestação de orgulho e uma ambição inadequada para quem se propunha a ser um frei menor.

E Antônio, vindo de Lisboa, tem papel fundamental na organização desta faceta “erudita” da Ordem. Ele, primeiro Doutor em Religião entre os Franciscanos, é culto, educado e excelente orador e vai, com os anos, mesmo depois da morte de Francisco, ganhando posição de mais e mais destaque junto aos seus pares.

Assis e Pádua distam, uma da outra, pouco mais de 360 quilômetros que podem ser feitos por belas paisagens, passando pela cidade de Bolonha na direção do Veneto. Estive nessas duas cidades no inverno de 2012, um dos mais rigorosos dos últimos anos na Europa - até em Roma nevou, coisa que fazia 25 anos que não ocorria - com os prós e contras de viajar no frio e na neve.

Não ficamos em Assis. Preferimos nos hospedar em Perugia em um excelente hotel em seu centro histórico, nas imediações da Piazza de Italia. Como chegamos a noite, com muito frio, no primeiro momento apenas pudemos apreciar a neve que cobria a cidade e um excelente restaurante local que foi indicado pelo concierge e que ficava nas imediações. Diante do frio que fazia o vinho tinto da Úmbria fechou com chave de ouro o primeiro dia na Itália.

O dia seguinte amanheceu esplendoroso, com um céu azul e um sol radiante que dava mais beleza ao contraste entre a arquitetura antiga do centro da cidade e a brancura da neve que havia caído durante a noite. Fazia frio, mas isso não nos impediu de fazer uma bela caminhada ao longo do Corso Pietro Vannucci, partindo da praça e seguindo na direção da Catedral, com direito a fotos na Fontana Maggiore e nas escadarias do Pallazzo dei Priori que fica ali defronte. O passeio foi mais que agradável, mas como o tempo era escasso, pouco depois do meio dia estávamos de novo no carro, agora rumo a Assis.

 A pequena cidade murada nos recebeu praticamente vazia, não sei se por conta de ser dia de semana ou se por conta do frio que fazia. Depois de achar com facilidade um lugar para estacionar o carro, logo fora das muralhas, seguimos diretamente para a Basílica de São Francisco de Assis que se encontrava igual e surpreendentemente vazia. Aqui e ali um peregrino, um pequeno grupo de turistas ou um franciscano aparecia para fazer uma oração ou para reverenciar o santo da casa.

A basílica, cuja construção começou logo depois que Francisco foi canonizado, lá pelo século XIII, é hoje um prédio de grandes dimensões, compreendendo a duas igrejas e a cripta, que guarda os restos mortais do santo. Apesar dos inúmeros afrescos e outros trabalhos de arte que a decoram o complexo religioso, a minha sensação foi de que aquela igreja não era compatível com o santo que eu esperava encontrar em Assis. Mesmo quando desci à cripta, ainda me pareceu que havia um descolamento entre o ambiente e a mensagem, algo grandioso demais para o santo que queria ser o menor dos seguidores de Cristo, não que fosse luxuosa, mas me pareceu grandiosa e acética. Distante! Algo parecido com o que senti quando visitei Fátima, mas isto é outra viagem.

De lá saímos caminhando pelas ruas tortuosas da cidade murada, pelas ladeiras cheias de lojinhas, que vendem todo o tipo de souvenires de São Francisco, Santa Clara e a da cidade. Passamos pela antiga praça do fórum da cidade romana de Asisium, hoje Piazza del Comune, para admirar o antigo templo de Minerva, depois convertido na igreja de Santa Maria sopra Minerva. Ali entramos em uma lanchonete e comemos qualquer coisa. A ideia era que o dia rendesse ao máximo, pois nosso próximo destino era a Basílica de Santa Clara, no extremo oposto da cidade.

Na igreja devotada a Santa Clara a mesma sensação. Pouca gente, pouco calor – realmente fazia frio. Uma sensação completamente diferente daquela que senti quando entrei na Basílica de Santo Antônio de Pádua, o frade português que depois juntar-se à Ordem dos Frades Menores veio a se converter, assim como seu líder, em um dos santos mais adorados da religião católica.

Dias depois de Assis estávamos em Pádua, cidade eleita como base para as incursões pelo Veneto. Depois da experiência pagã de acompanhar o carnaval veneziano e brindar com um Brunello a noite de sábado na Piazza San Marco, o dia seguinte amanheceu frio e nublado, convidando a ficar ali mesmo pela cidade-base.

Como o hotel ficava fora da cidade murada, convenientemente perto da rodovia para facilitar os deslocamentos, fomos de carro até o centro da cidade, paramos no estacionamento do Pratto de la Valle, uma enorme praça elíptica no centro da cidade, que naquele dia recebia uma feira de antiguidades. Depois de comprar algumas cédulas e moedas antigas para a coleção, seguimos na direção da Basílica.

Uma leve garoa começou a cair aumentando a sensação de frio e aceleramos o passo para chegar à igreja.

Quando entrei na Basílica a sensação foi completamente oposta da que havia experimentado em Assis. Era hora da missa e a nave principal estava lotada. Não só os cânticos e a celebração da missa eram envolventes, mas havia naquele momento uma sensação de conforto que – mesmo para alguém que não é muito dado a questões espirituais – era mais que o mero conforto físico.

O ambiente da basílica – o calor, as pessoas, as vozes, as imagens, as sensações – acalmavam corpo e espírito e, ainda que ir ver a língua do Santo que está ali exposta seja uma experiência diferente, por assim dizer, não posso negar que naquele momento tive uma experiência transcendental.

Em Pádua me senti mais perto de entender o ideal franciscano e o poder transformador da entrega espiritual, coisa que não encontrei em Assis, em nenhum momento. Tudo bem que a neve nos impediu de visitar a Porciúncula, o que talvez tivesse possibilidade um encontro de igual natureza, mas a experiência da Basílica ainda estava comigo mesmo quando estava do lado de fora tirando fotos em frente a estátua equestre produzida por Donatello do famoso condottieri Erasmo de Narni, vulto Gattamelata .

Mas Pádua tinha mais a oferecer!

Sede da segunda universidade mais antiga da Itália, perdendo apenas para a de Bolonha, a cidade tem inúmeros atrativos para os que gostam da cultura e da história da “bota”. Em especial a Cappella degli Scrovegni com os belíssimos afrescos pintados por Giotto. A pequena capela é uma das principais atrações turísticas da cidade e, com certeza, vale a visita e a espera, uma vez que só se entra em visita guiada, com número restrito de visitantes e depois de uma série de controles de temperatura e biologicos para evitar que as pinturas se deteriorem.

Nas ruelas da cidade velha também se encontram vários prédios históricos e museus – como o ótimo museu da cidade, praticamente em frente à Cappela famosa – que garantem dias de diversão e entretenimento de qualidade.

Já Assis merecerá nova visita.

Quem sabe na primavera, quando poderei passear nos campos que a cercam e que pareciam muito bonitos à distância. Visitar as pequenas capelas, caminhar pelos lugares onde São Francisco viveu e pregou e aproveitar melhor a campanha italiana com atividades mundanas como um bom vinho e uma boa mesa.

Em tempos de Francisco, nada melhor que calçar as sandálias da humildade e reconhecer que o mais provável é que o frio tenha embotado meus sentimentos do que negar a espiritualidade da terra natal de tão extraordinário homem.