sábado, 15 de março de 2014

Além da vista e das expectativas

Fonte: Blog do Borjão.


A cada dia, mais me surpreendo com as situações inusitadas que viagens e livros me colocam.

Na minha última viagem de Lisboa para Fortaleza acabava de assumir meu lugar na aeronave com um livro que há algum tempo vinha me preparando para ler, quando o meu vizinho de assento – e companheiro de viagem nas próximas sete horas – me perguntou o que achava do livro que estava trazendo.

Ao saber que sequer havia começado a lê-lo, não se fez de rogado e me perguntou se eu não gostaria de ler um de sua autoria. Explicou-me que era um livro pequeno e que antes mesmo de chegarmos ao nosso destino já teria terminado sua leitura, me oferecendo um exemplar de empréstimo.

Apesar de não estar muito disposto a adiar a leitura do livro que havia escolhido, achei que não ficaria bem negar tão simpática oferta e findei aceitando o desafio.

Assim fui apresentado ao criador, Aidano Ayres de Moura, e à criatura: Além da Vista. O livro era realmente pequeno e, cá com meus botões, pensei que poderia começar a leitura, meio que por educação, e depois da refeição, por exemplo, poderia passar para o livro que efetivamente pretendia ler durante a viagem. Seria um atraso, mas não uma perda total.

O livro contava a estória de Antônio, um filho de pescador, de uma pequena vila de pescadores chamada Fortaleza dos Ferreiras que depois de ter saído de casa na juventude para tentar a sorte, retornava à sua terra natal em visita a sua tia, única parente que ainda lhe restava naqueles confins, e descansar, por duas semanas, de sua atribulada vida na marinha mercante.

Fortaleza dos Ferreiras é uma pequena vila de pescadores em um lugar qualquer do Brasil, cercada por lagoas e coqueirais, com uma pequena igreja – em torno da qual se dão os principais eventos da comunidade – uma escola, umas poucas ruas de areia em cima de uma falésia e uma modorrenta atividade de pescadores e jangadas na sua faixa de praia.

O acesso à vila ainda é complicado e apesar dos avanços que começam a aparecer – energia elétrica, agua encanada e outros que tais – o regresso de Antônio à cidade, além do rebuliço natural da volta do filho ausente, permite que o autor volte no tempo e nos conte a interessante estória de Angélica, que queria ser a santinha nas procissões da igreja, do caso de sua mãe com o Padre Anselmo e do surgimento de um lobisomem na vila, que vinha a ser o pai do Abcias, melhor amigo de Antônio e seu companheiro em todas as aventuras na juventude.

Mais surpreso fiquei – mais do que com o inusitado do convite do autor – ao descobri que não conseguia largar o pequeno livro até que o terminasse. E olhe que quando o fiz, ainda faltava quase a metade do tempo do voo para chegarmos ao Pinto Martins.

Contado numa narrativa leve e no mais das vezes engraçada, o texto de Aidano nos transporta para o meio da pequena vila, nos permite sentir a brisa gostosa que sopra naqueles altos de falésias nas noites de lua, nos convida a participar das festas de gente simples, regadas a cachaça e forró e nos lembra da vida calma e bucólica de tantas vilas e cidades pelo litoral brasileiro.

Ainda que não estivesse situada em qualquer estado ou região brasileira, a leitura de Além da Vista me proporcionou uma viagem no tempo, um retorno à minha infância e adolescência, num tempo antes de nos mudarmos para Brasília, quando meus pais compraram e reformaram uma pequena casa de pescador – do Seu Luiz – na Prainha.

Naquele tempo não havia a ponte sobre o Rio Pacoti, não existia Beach Park, o Porto das Dunas, nem uma rodovia duplicada como a que temos hoje. Saíamos de casa, na Rua Joaquim Nabuco e pegávamos a Antônio Sales no rumo da salina dos Diogo. Ali tomávamos a direita na direção das Seis Bocas e de lá, seguindo a estrada, tomávamos o rumo de Messejana.

Messejana ainda hoje é distrito de Fortaleza, mas na época, por conta da sua distância da capital parecia uma pequena cidade do interior com centro e vida próprios. No caminho também passávamos pela pracinha da igreja do Eusébio, ainda um distrito, e seguíamos para Aquiraz, cortando o centro histórico da cidade e, finalmente, pegando a estrada da Prainha. 

Era uma viagem. Íamos na sexta feira para passar o fim de semana ou de temporada quando das férias.

A Prainha era ainda um pequeno núcleo de pescadores. É bem verdade que no inicio dos anos setenta algumas casas de praia de gente de Fortaleza já haviam sido construídas na frente da praia, mas eram poucas e no geral prevaleciam as pequenas casas de pescadores, muitas ainda de taipa, portas e janelas pequenas, algumas rebocadas e caiadas, mas todas com aquela simplicidade característica das comunidades tradicionais de pescadores.

No centro da vila, onde hoje é um centro de rendeiras e artesanato, ficava um enorme - pelo menos assim me parecia - coqueiral onde jogávamos futebol de pés descalços a tarde inteira e no outro dia tínhámos que pedir ajuda à Rosalba ou à Inha para tirar os bichos-de-pé que nos atacavam como uma praga.

Quando não estávamos nadando ou jogando bola com os meninos da vizinhança, investíamos nossas manhãs na irresponsável aventura de atravessar o Rio Catu para procurar por balas de metralhadora dos aviões da Força Aérea que fazia da outra margem do rio de campo de treino de artilharia para seus pilotos.

Rezava a lenda que uma vez, alguns filhos de pescadores da cidade tinham resgatado uma bomba e que ela acabou explodindo dentro de casa enquanto tentavam desmontá-la. Nunca consegui confirmar a veracidade da estória, mas certamente dava mais emoção à busca.

Nas últimas vezes que fui por lá, já na adolescência quando vinha de férias de Brasília, passeava com meus amigos em um buggy BRM vermelho que o meu tio Dudu nos emprestava. Com quinze-dezesseis anos éramos os donos das praias e das dunas, tentando impressionar as meninas e nos aventurando em manobras automotivas radicais.

À noite, nas sextas feiras, tinha um forró n’O Leôncio – que da última vez que estive por lá ainda resistia bravamente aos avanços do turismo e as pressões da urbanização da sede do distrito – que era restaurante na maior parte do tempo e também servia de eventual clube de forró.

Apesar de não ser encarapitada em falésias ou formações similares – como é o caso de Pipa no Rio Grande do Norte ou Trancoso na Bahia – a Prainha da minha infância tinha tanta semelhança com a Fortaleza dos Ferreiras de Aidano que foi impossível não acompanhar as peripécias de Antônio, Angélica e Abcias nas lagoas, dunas e praias de sua terra natal sem me lembrar desse período da minha vida.

Também não tinha como pensar na Prainha daqueles tempos sem lembrar das estórias que os pescadores contavam, das assombração nas noites de lua ou das fofocas e dos causos que dos vizinhos. Eram tempos de lobisomens, gabirus e outras feras que ameaçavam as tranquilas noites de praia, enquanto os adultos bebiam, conversavam e jogavam um carteado.

Hoje essa Prainha não existe mais! Pelo menos não aqui perto de Fortaleza, nem em Pipa, nem em Trancoso. Talvez em praias mais distantes e menos acessíveis ainda se consiga encontrar esse clima de encantamento a que nos remete as viagens fantásticas da Fortaleza dos Ferreiras, mas não mais em Aquiraz.

O turista que vai para aqueles lados hoje, ainda se impressionará com a vista maravilhosa da APA da Foz do Rio Pacoti, mas muito provavelmente ficará em Porto das Dunas em algum lugar nas proximidades do Beach Park – para onde levará seus filhos para grande diversão – ou se hospedará em um dos caros condomínios que estão ocupando cada metro de duna, cada frente de praia, entre o rio e a Prainha.

Mesmo aqueles que se aventurarem além dos limites do Porto das Dunas, que passarem pela Praia do Japão, avançarem além das barracas de praia e chegarem ao centro da Prainha irão ver muito pouco do que agora conto.

O distrito se estruturou, o comércio cresceu, os hotéis e pousadas chegaram, novas casas foram construídas e muito pouco ficou da rústica vila de pescadores.

Claro que logo cedo pelas manhãs, lá nas proximidades da foz do Catu, os pescadores estarão chegando com suas jangadas e vendendo seu pescado ali mesmo na praia, como faziam nos anos setenta e seus avôs fizeram antes disto. 

Mas dificilmente os visitantes conseguirão ver além disso, muito aquém da vista que o texto de Aidano proporcionou.