Quando viajo, não tenho o costume de ficar prestando atenção
nas conversas dos meus vizinhos de poltrona. Entretanto, numa de minhas últimas
viagens entre Fortaleza e Brasília não tive como não captar fragmentos da
conversa que minhas 3 vizinhas de poltrona levavam. Primeiro porque elas
conseguiram conversar ininterruptamente durante as duas horas e meia da viagem e
depois, porque não falavam baixo.
A temática era sempre em torno de religião, igreja, suas
ações missionárias e viagens e não pude deixar de ouvir quando uma delas,
narrando empolgadamente uma viagem que fizera a Jerusalém se exaltou na
descrição de sua experiência quase gritando: EU VI!!! EU VI!!! EU ACREDITO!!!
Descrevia a visita ao Getsêmani e, provavelmente, outros locais santos da
cidade.
Claro que não pude deixar de pensar na viagem que eu mesmo
fiz à Terra Santa e como minha mãe, por exemplo, ficou um tanto decepcionada
com o tratamento dado aos lugares santos para o Cristianismo. Também não pude
deixar de comparar a certeza da fé da minha companheira de viagem com os muitos
questionamentos sobre o “Jesus Histórico” levantados por Reza Aslan no livro Zelota, a vida e a época de Jesus de
Nazaré.
Todo livro que trata de discutir a vida de Jesus de Nazaré pautado
no “rigor da ciência” ou que se propõe a empreender a tal busca pelo “Jesus
histórico”, será, na melhor das hipóteses, controverso. E o livro de Aslan não
é diferente. Não a toa que minha sogra Zaína até começou a lê-lo, mas pouco
antes de terminar o primeiro capitulo devolveu o exemplar reclamando que estava
muito confusa e não queria mais. Minha mãe, outra católica convicta, sequer se dispôs
a lê-lo. E não tiro razão das duas. O livro não é viagem para qualquer um.
Aslan se esforça por construir dos poucos fragmentos
que dispomos deste período da história dos homens na terra a
imagem do Jesus histórico, o homem e suas condições de vida. E, desde logo
alerta que não pretende discutir o outro Jesus, o Cristo, o Salvador. Mas não
são todos que, sem grandes inquietações, conseguem separar um do outro, o Nazareno
do Cristo.
Desde o início Aslan coloca sob o julgamento judicioso da
história uma série de fatos que, por tradição bíblica, todos que fomos educados
com auxílio do Novo Testamento, seja em casa, na igreja ou na escola, tínhamos
como certo. É um texto instigante e muito interessante, ainda que muito
fundamentado em especulações e analogias.
Para ficar em apenas um exemplo dos muitos que o autor
apresenta, Aslan contesta a versão bíblica de que Jesus teria nascido em Belém.
Para ele, o nazareno – que é assim chamado ao longo do texto sagrado – nasceu
mesmo em Nazaré, onde viviam seus pais Maria e José e que não haveria razão
para terem ido a Belém, uma vez que: (1) o único Censo que se tem noticia de
ter sido realizado no período da ocupação romana em Israel aconteceu vários anos
depois do nascimento de Jesus e (2) como o Censo era para arrecadar impostos,
não fazia sentido cadastrar as famílias (ou seja, os contribuintes) com base no
lugar de onde elas procediam, mas sim, onde elas produziam suas riquezas.
Especula então o autor, que o nascimento do menino Jesus em
Belém responde à necessidade de convalidar profecias do Antigo Testamento que
afirmavam que o esperado Messias do povo de Israel viria da casa de Davi e
nasceria em Belém. Assim, para ele, nem Jesus nasceu em Belém, nem José e Maria
fizeram tão sacrificada jornada, tendo permanecido na Galileia por quase toda
sua vida.
O ponto central do argumento do livro de Aslan é que Jesus,
o Nazareno, alcançou o destaque que alcançou porque conseguiu juntar na sua
peregrinação pelas terras de Israel e Síria, a palavra revolucionária que teria
aprendido de João Batista no período em que o acompanhou, com a ação prática de
atender aos pobres, dando-lhes atenção e curando de seus males.
Para chegar a este ponto Aslan nos apresenta , com cores
bastante realistas, a situação que vivia o povo de Israel naqueles anos:
submetidos à opressão política do governo de Roma; explorados economicamente
pelos Sacerdotes do Templo, em uma aliança com os romanos considerada espúria
pelos próprios judeus; e, enfrentando períodos de seca em que a fome grassava.
É neste ambiente que surgem os muitos messias que viriam
para libertar o povo de Israel do jugo romano e resgatar trono de Davi. É
também o caldo de cultura necessário para começar um movimento político que só
se consolidaria depois da morte de Jesus: o dos zelotas ou zelotes. A origem do
nome derivaria do zelo com que essas pessoas tratavam as coisas sagradas para o
povo de Israel, especialmente o Tempo e a Lei.
Para Aslan, Jesus, tendo visto a exploração e o sofrimento do
seu povo no período em que vivia na Galileia, tendo ouvido a mensagem de João
Batista e a ela aderido, resolve depois da sua morte nas mãos de Herodes
Antipas – não preciso dizer que Aslan contesta a veracidade da história que
Salomé teria seduzido o rei para que este entregasse a ela a cabeça de João
Batista em uma bandeja – começar, ele mesmo, uma ação missionária e
evangelizadora junto ao seu povo.
O autor nos conta que naquele tempo eram comuns os
profissionais que, a preços nem sempre módicos, vagavam de vila em vila
oferecendo cura aos males físicos e espirituais das populações. Naquela época,
quase toda doença tinha uma explicação mística, assim, aliviar os sintomas de
doenças e expulsar demônios dos coitados eram fases de um mesmo processo de
cura. E Jesus seria um desses profissionais. Com uma singela diferença: ele
fazia de graça, bastava que as pessoas ouvissem sua mensagem.
Logo, logo multidões
saiam em busca do homem que tratava dos pobres e falava dos problemas que elas
enfrentavam em uma linguagem que lhes era próxima e compreensível. Aslan
especula que João Batista teria formação erudita, diferente de Jesus que
provavelmente era analfabeto. Assim, enquanto João e os sacerdotes e escribas
falavam em hebraico, a língua dos eruditos, Jesus falava o aramaico que era a
língua do povo e tinha passado por tudo o que aquelas pessoas passavam, ele
também, filho da pobreza da Galileia.
Jesus, ainda segundo o autor, teria clara noção dos riscos
que corria. Antes dele e de João Batista, muitos tinham ido ao povo com a
mensagem da chegada do messias e do reino de Israel – que para Aslan não era um
reino dos céus, mas um reino terreno – e foram considerados traidores
revolucionários e levados à morte. Em geral, a morte que Roma destinava aos que
participavam de qualquer tipo de sedição contra o império era a crucificação.
Por isso, a maior parte do tempo em que passou pregando, Jesus teria evitado os
grandes centros urbanos da Galileia até que sua fama superou os limites da
província e ele julgou ser a hora de enfrentar aqueles que ele considerava os
grandes traidores do povo de Israel, os sacerdotes e outros guardiões do
Templo. E aí sua decisão de ir a Jerusalém.
Também as muitas passagens dos Evangelhos sobre a estada de
Jesus em Jerusalém, segundo Aslan, é marcada por contradições históricas. Delas
destaco uma que achei curiosa.
Para o autor Pôncio Pilatos jamais teria lavado as mãos,
como nos conta o texto sagrado. Em um período de grande turbulência na região,
Pilatos conseguiu ficar por mais de 10 anos como o preposto de Roma em
Jerusalém graças a uma aliança com Caifás, o Sumo Sacerdote, à frente de um governo
tirânico e assassino, a tal ponto que a população de Jerusalém mandou carta ao
Imperador protestando contra a crueza de seu governo e pedindo seu afastamento.
Para o autor Pilatos sequer se daria ou trabalho de ouvir um
judeu – povo que ele desprezava – que estivesse participando de um movimento
revolucionário contra Roma. Por muito menos que isto ele havia mandado
massacrar centenas de pessoas na entrada do Templo. Para ele nem esse diálogo, nem a tal cena do
“ecce homo”, nem a escolha de Barrabás (bar Abbas) teriam ocorrido. Esta
passagem, especula, teria sido incorporada ao Novo Testamento depois que o
cristianismo virou religião oficial do Império Romano. Como poderia ser esta, a mesma Roma a responsável por mandar
matar o Cristo? Mas fácil botar a culpa nos judeus do Sinédrio!
O que o autor não consegue explicar é porque menos de 30
anos depois da crucificação de Jesus, como mais um revolucionário sedicioso, já
se espalhava por toda Israel e logo pela Ásia Menor (graças à dinâmica atuação
de Paulo) a crença na ressurreição do Cristo e a força da sua mensagem. Porque, de todos os zelotas do período, é sobre este único que
2000 anos depois ainda se fazem cultos, curas, guerras, livros, palestras e
seminários?
Ele até tenta responder à questão, mas o esforço é insuficiente.
Para meus companheiros de viagem, especialmente para minha
mãe, insuficiente é a forma como Cristo e o cristianismo são tratados em
Israel. Tentei mostrar a ela que em uma região onde predomina a disputa entre
judeus e muçulmanos, as atenções para as questões do cristianismo e para as
muitas igrejas de filiação cristã que ocupam o território de Jerusalém não
poderiam ser lá muito grandes, mas ela não se satisfez, achou pouco.
A Galileia é, para os cristãos, a região onde mais se
encontram referências à passagem de Jesus por Israel. A par da discussão sobre
o local do seu nascimento, foi em Nazaré que ele teria crescido e alcançado a
vida adulta. Foi lá que Maria o concebeu e, consequentemente, é ali que está a
Basílica da Anunciação, construída sobre o local onde, de acordo com a tradição,
o anjo Gabriel anunciou à Virgem a vinda do Messias. É uma igreja grande e
moderna, que se sobrepõe a várias outras construídas em diferentes períodos da
história do cristianismo em Israel.
Além do interesse religioso, chama a atenção, o fato de que
morar em grutas ou cavernas era lugar comum na região naqueles tempos. De
acordo com as pesquisas arqueológicas eram poucas as casas construídas como
tal, em geral as famílias usavam as formações rochosas que existiam por ali como
extensão de suas casas para armazenar produtos, guardar animais e, em muitos
casos, como a própria casa. Assim, o nascimento de Jesus numa gruta não seria
impossível, talvez até provável, fosse em Nazaré ou fosse em Belém.
Ao lado da Basílica está outra igreja – devotada a São
José – construída sobre as ruínas de onde se acredita teria sido a oficina de
trabalho do Pai de Jesus. Neste ponto, por exemplo, Aslan concorda com o Novo
Testamento ao afirmar que se José era um tekton (artesão, carpinteiro,
pedreiro, marceneiro e etc) e morador de Nazaré, provavelmente teria trabalhado
boa parte da sua vida – quem sabe com a ajuda dos seus filhos – na vizinha
cidade de Sepphoris, cidade que Herodes Antipas reconstruiu para transforma-la
em sua primeira capital na Galileia.
Hoje as ruínas de Sepphoris formam um museu a céu aberto
localizado a poucos quilômetros de Nazaré. Muitos dos peregrinos cristãos que
seguem para Israel para um encontro com o Jesus Cristo – não o de Aslan, mas O Jesus
que eles acreditam – provavelmente passam sem notar a cidade quando seguem para
o Mar da Galileia partindo do aeroporto de Tel-Aviv.
Além de Sepphoris, bem perto de Nazaré está Canaã, a das
bodas, onde Jesus teria realizado seu primeiro milagre ao transformar água em
vinho, por pedido de sua Mãe. Para os que têm interesse em conhecer a pequena
igreja construída no local onde o milagre teria acontecido é bom prestar
atenção ao caminho: é muito fácil passar direto e nem perceber onde é o local,
pois é muito mal sinalizado. Também é uma visita por desencargo de consciência,
não achei uma parada imperdível.
Destino obrigatório para os que visitam Israel do Novo
Testamento é o Mar da Galileia. O grande lago de água doce em torno do qual
Jesus – o Nazareno e o Cristo – fez a maior parte de sua ação religiosa (ou
política, segundo Aslan). Ali, ao redor daquele belo lago, Jesus encontrou seus
apóstolos, os pescadores de peixes que ele prometeu tornar pescadores de homens
e almas e foi em Cafarnaum, pequena vila de pescadores às margens do Mar da
Galileia que fez a base para sua ação missionária.
Uma volta no Mar da Galileia pode começar por Tiberíades,
que também foi construída por Herodes Antipas para abrigar sua segunda capital,
quando se mudou de Sepphoris. É a maior cidade da área, com a melhor oferta de
hotéis e resorts, que por ficar às margens do lago é hoje um balneário para os
israelenses. Além dos hotéis a cidade também oferece algumas opções de bons
restaurantes, píer e marinas para atividades náuticas e um calçadão às margens
do lago. Apesar de tudo, confesso que a cidade não me impressionou muito.
Saindo de Tiberíades, para sua esquerda, contornando o Mar
da Galileia o viajante passa por Tagbah, onde teria acontecido o milagre da
multiplicação dos pães citado no Novo Testamento, também nas imediações, no
topo de um morro, está a Igreja das Beatitudes, construída no local onde Jesus
teria proferido o sermão das bem aventuranças. Logo adiante está Cafarnaum.
As ruínas de Cafarnaum são pequenas, mas merecem ser
visitadas. Além de permitirem uma ideia de como seria a vida em uma vila de
pescadores nos tempos de Jesus, a visita é rápida e bem organizada, com
destaque para as ruínas de uma bela sinagoga de arquitetura helenística e a igreja –
não tão bela, já que mais parece um disco voador – construída sobre as ruínas
do que se acredita ter sido a casa de Simão, o Pedro. O passeio prossegue no
sentido sul até chegar ao local no Rio Jordão onde João teria batizado Jesus.
Depois de contornar o Mar da Galileia o viajante pode seguir em
direção ao sul do País, acompanhando o curso do Rio Jordão, tendo do outro lado
da margem a Cisjordânia e a Jordânia. Ao longo de todo o trajeto irá se
surpreendendo com a impressionante capacidade do povo de Israel de produzir
frutas e verduras no meio de uma paisagem desértica. São muitas as ilhas de
produção que verdejam sobre o branco amarelado do deserto da fronteira oeste do
país.
Mais ou menos duas horas de viagem depois se chega às
proximidades do Mar Morto e ao entroncamento que seguirá para Jerusalém. Ali,
logo a esquerda, está a cidade de Jericó, considerada a mais antiga do mundo ainda habitada,
com registro de ocupação humana há mais de 10.000 anos e mais baixa cidade do
mundo, pois está a mais de 200 metros abaixo do nível do mar.
Tirando a curiosidade quanto a sua antiguidade, não há muito
que ver por lá. Tem um teleférico que leva a um conjunto de igreja e mosteiro incrustado na encosta da Serra de Judá e algumas ruínas de um palácio que,
provavelmente, pertenceu a Herodes.
Além disso, só a descoberta que, atualmente, no território
da antiga Israel convivem dois países: o Estado de Israel e a Autoridade
Palestina. E que, por mais estranho que possa parecer, o carro que alugamos em
Tel Aviv não poderia entrar neste outro país! Nem em Belém, nem em qualquer
outra cidade administrada pela Autoridade Palestina.
Vinte e poucos quilômetros adiante, depois de voltarmos a
estar acima do nível do mar, chegamos a Jerusalém, uma metrópole com avenidas
largas, ótimos serviços de transporte urbano, hotéis e shoppings de todos os
preços e qualidades, isto sem falar, é claro, na cidade murada, a Jerusalém
antiga, nosso principal objeto de interesse. Mas antes, um passeio nos seus
arredores: Belém, o Monte das Oliveiras, entre outros.
Nos vários pontos de referência do cristianismo em Jerusalém
e suas imediações a mesma sensação: gente demais. As igrejas, seja a da
Natividade em Belém, seja a do Santo Sepulcro em Jerusalém – depois de fazer toda
a Via Dolorosa – vem a sensação de que há gente demais para o pouco espaço.
Isso, pelo menos para mim, comprometeu toda e qualquer possibilidade de alguma
experiência transcendental, diferente da minha companheira de vôo que viu e
acreditou!
Ademais, nisso dou o braço a torcer às queixas da minha mãe,
a falta de um guia com experiência nas ruas da cidade e com conhecimento do
Novo Testamento compromete o que se pode aproveitar da visita, uma vez que há
pouca informação sobre a relação entre os locais e as passagens bíblicas. É
fácil para o turista perder ou não compreender a importância de determinado
local ou sua relação com determinada passagem da Bíblia,
Não bastasse isso, depois de 2000 anos de cristianismo, os
locais considerados sagrados já foram objeto de inúmeras intervenções. Cada
monumento, basílica ou igreja estão construídos sobre, pelo menos, outras duas de
períodos anteriores: quase sempre, uma do período bizantino e outra do período
das Cruzadas. Isso sem falar das disputas entre as denominações religiosas que fazem com
que, em algumas situações, elas divirjam entre si, sobre o lugar onde
“realmente aconteceu” tal evento. Com facilidade o visitante fica confuso.
Para os que não foram apenas em busca da Terra Santa Cristã
outras atrações estão disponíveis tanto na velha como na nova Jerusalém. Há o
famoso Muro das Lamentações, única parte do antigo Templo que sobreviveu a fúria
romana quando da repressão à revolta judia no ano 60 d.C., há a mesquita de
Omar ou o Domo da Rocha de enorme importância para os muçulmanos, há as
muralhas e a interessante história da milenar Jerusalém, construída e destruída
um sem número de vezes, isto sem falar nas atrações dos mercados de rua e da
agitação de uma cidade que vive entre o presente e o passado.
As noites de quinta feira, que antecedem o shabat, são
especialmente animadas e a Porta de Jaffa, principal entrada para a cidade
murada de Jerusalém, fica movimentada com eventos e apresentações culturais que
animam os visitantes e moradores até altas horas da noite. Mas no dia seguinte,
especialmente a partir do horário do almoço, nada funciona, nem mesmo os
serviços de transporte público. Assim, é importante atentar para os dias em que
se pretende visitar as atrações da cidade.
Por fim, tanto para os que pretendem se aventurar
na leitura de Aslan ou numa viagem a Israel, uma consideração: talvez nem seu
conhecimento sobre a Bíblia, nem a força da sua fé sejam suficientes para
aproveitar ao máximo o que ambos podem lhe proporcionar. Como disse no início,
não é uma viagem para qualquer um!
sexta-feira, 18 de abril de 2014
Jesus de Nazaré, da Galileia, Belém e Jerusalém...
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