terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

Os Enigmas de Chartres.



Uma das minhas manias de viagem é a de comprar livros que tratem da história ou de aspectos da vida dos países ou cidades que visito. Esta mania tem me ajudado a descobrir curiosidades e muitas coisas interessantes de tais lugares, como na viagem que fiz à França para comemorar os 70 anos de meu pai.

Numa tarde chuvosa, em que as mulheres preferiram investir nas compras numa dessas Zaras da vida, entrei em uma livraria e acabei por comprar uma edição de bolso do livro “Le Régent, Le Guerrier Libertin” de Patrick Pesnot, jornalista e escritor francês conhecido em suas terras pela autoria de romances históricos “trés documentes”, como explica sua apresentação.

O guerreiro libertino é o primeiro volume da história do Duque Felipe II de Orleans, sobrinho de Luis XIV, o famoso Rei Sol, aquele que nos velhos livros de história era apresentado como o símbolo paradigmático do absolutismo, autor da igualmente famosa e nada modesta frase: “O Estado sou Eu!”

O maior desafio desta minha experiência foi enfrentar uma história escrita em francês tendo como ferramenta o meu francês “achado na rua”, que não sabe sequer diferenciar o passado e o presente do futuro!

No início da minha tarefa, que logo se mostrou hercúlea (o livro tem mais de 400 páginas), recorri ao auxílio de um dicionário, mas como não conseguia avançar, acabei abandonando esta estratégia e me conformando em entender o sentido da história, perdendo a riqueza dos detalhes e dos ferinos comentários que o autor colocava na boca das personagens.

Apesar da minha deficiência no idioma logo ficou claro que a trama narrada por Pesnot se desenvolve em torno do esforço de Felipe, duque de Chartres (ele só vira duque de Orleans quando seu pai, o primeiro duque falece), de desvendar o enigma da sobrevivência em uma corte mesquinha e invejosa, cheia de fofocas e puxa-sacos e de um rei que governava e decidia em função do seu humor e sob forte influência de suas amantes, especialmente, da poderosa M. de Maintenon.

Apesar de sobrinho legítimo do rei, herdeiro das coroas de França e Espanha, filho de um dos homens mais ricos da França e de uma princesa alemã, Felipe logo aprende que em um ambiente como a corte de Versailles desempenhar com sucesso suas tarefas nem sempre é motivo de promoção e reconhecimento.

Na verdade, quanto mais bem sucedidas foram suas campanhas nos campos de batalha mais seus inimigos envenenavam o rei e seus herdeiros, com o argumento de que ele seria uma ameaça à sucessão e que ambicionava tomar para si a coroa e o amor dos seus súditos.

Nisto o livro de Pesnot se mostra extremamente atual! É impressionante notar que trezentos anos depois da morte de Luis XIV a política cortesã continua tendo as mesmas características, com um exército de puxa-sacos distorcendo o julgamento do rei de plantão, fazendo com que seja mais negócio ser um cortesão dócil e inofensivo, do que ser um gestor eficiente e dotado de luz própria.

Como avisava Augusto dos Anjos há mais de cem anos: a mão que afaga é a mesma que apedreja!

Demorou um tempo para que Felipe decifrasse o enigma sobre quem estava por trás dos constantes reveses políticos que ele sofria mas, quando ele estava no fundo do poço, quando sua conduta libertina e sua nem sempre bem disfarçada ambição pela coroa espanhola – sim, ele tinha sua parcela de culpa – tinham servido mais uma vez aos seus adversários para manchar e corromper sua imagem perante o tio-rei, ele se vê bafejado pela sorte, se é que se pode chamar a morte de familiares próximos de sorte.

Entre 1711 e 1712 morreram vítimas de um surto de escarlatina: o Delfim (ou seja, o príncipe herdeiro), pai do Rei de Espanha, primo legítimo de Felipe e um dos seus principais adversários na corte; o filho mais velho do Delfim, que seria o segundo na linha de sucessão real e sua esposa; e, também o neto mais velho do rei Luis XIV. De repente, em menos de um ano, morreram os 3 primeiros nomes na linha de sucessão real e o próximo herdeiro – que seria o futuro Luis XV – tinha apenas 2 anos de idade.

Claro que os adversários de Felipe viram nesta sucessão de adventos fatais o risco a que estariam expostos e trataram de acusá-lo de ter envenenado toda a família real. Diante do absurdo da acusação, quando Luis XIV morre em 1715 deixando como herdeiro seu bisneto com apenas 5 anos de idade, Felipe se torna o Regente e o todo poderoso da França, mostrando a face igualmente enigmática e surpreendente da política.

Apesar de Felipe ser o duque de Chartres, a cidade só aparece na história no título honorifico da personagem principal. A maior parte dela se passa em Versailles, onde Luis XIV mantinha sua corte, no Palácio de Saint Cloud, residência do Duque de Orleans e no Palais Royal, que era a casa da família Orleans na cidade de Paris.

Chartres é uma pequena cidade nas imediações de Paris e é uma das alternativas de caminho para aqueles que saem da capital francesa para o Vale do Loire (a outra, mais usada, passa por Orleans). Com um centro histórico bem preservado, a cidade convida o turista para boas caminhadas em suas ruas de paralelepípedos e para aproveitar da paz e da tranquilidade que é garantia para quem a visita.

Sua principal atração é a catedral consagrada a Nossa Senhora, que foi construída no século XII, tendo sido reconstruída algumas vezes nos seus quase mil anos de existência. O edifício atual é de 1260, com importantes acréscimos realizados durante o século XVI.

 Além de representar o auge da arquitetura gótica francesa, a catedral é visitada anualmente por milhares de turistas interessados nos seus magníficos vitrais, pois na Notre Dame de Chartres está o mais importante conjunto de vitrais do século XIII que pode ser apreciado, em toda sua beleza, durante um passeio pela nave da igreja num fim de uma tarde de outono.

São tantas e tão variadas as histórias contadas por meio dos vitrais que justificam o título de “a Bíblia feita de pedra” com milhares de estátuas e de personagens bíblicos representados tanto nos vitrais como nas fachadas do templo. Ainda que não seja um enigma, não há como decifrar todas suas referências ao Livro Sagrado sem o apoio de um guia ou dos panfletos que ficam à disposição dos turistas.

Depois de ver a catedral o visitante pode voltar a passear pelas ruas do centro da cidade e aproveitar para fazer um lanche rápido antes de seguir sua viagem porque, apesar da beleza da catedral e da tranqüilidade do centro da cidade, só se passa por Chartres a caminho de outro lugar: como no caso do nosso romance, Felipe foi Duque de Chartres até virar Duque de Orleans, mas queria mesmo era governar a Espanha e a França.