Uma das minhas manias de viagem é a de comprar
livros que tratem da história ou de aspectos da vida dos países ou cidades que
visito. Esta mania tem me ajudado a descobrir curiosidades e muitas coisas interessantes
de tais lugares, como na viagem que fiz à França para comemorar os 70 anos de
meu pai.
Numa tarde chuvosa, em que as mulheres
preferiram investir nas compras numa dessas Zaras da vida, entrei em uma
livraria e acabei por comprar uma edição de bolso do livro “Le Régent, Le
Guerrier Libertin” de Patrick Pesnot, jornalista e escritor francês conhecido
em suas terras pela autoria de romances históricos “trés documentes”, como
explica sua apresentação.
O guerreiro libertino é o primeiro volume da
história do Duque Felipe II de Orleans, sobrinho de Luis XIV, o famoso Rei Sol,
aquele que nos velhos livros de história era apresentado como o símbolo paradigmático
do absolutismo, autor da igualmente famosa e nada modesta frase: “O Estado sou Eu!”
O maior desafio desta minha experiência foi
enfrentar uma história escrita em francês tendo como ferramenta o meu francês
“achado na rua”, que não sabe sequer diferenciar o passado e o presente do
futuro!
No início da minha tarefa, que logo se mostrou
hercúlea (o livro tem mais de 400 páginas), recorri ao auxílio de um dicionário,
mas como não conseguia avançar, acabei abandonando esta estratégia e me
conformando em entender o sentido da história, perdendo a riqueza dos detalhes
e dos ferinos comentários que o autor colocava na boca das personagens.
Apesar da minha deficiência no idioma logo ficou
claro que a trama narrada por Pesnot se desenvolve em torno do esforço de
Felipe, duque de Chartres (ele só vira duque de Orleans quando seu pai, o primeiro
duque falece), de desvendar o enigma da sobrevivência em uma corte mesquinha e
invejosa, cheia de fofocas e puxa-sacos e de um rei que governava e decidia em
função do seu humor e sob forte influência de suas amantes, especialmente, da
poderosa M. de Maintenon.
Apesar de sobrinho legítimo do rei, herdeiro das
coroas de França e Espanha, filho de um dos homens mais ricos da França e de
uma princesa alemã, Felipe logo aprende que em um ambiente como a corte de
Versailles desempenhar com sucesso suas tarefas nem sempre é motivo de promoção
e reconhecimento.
Na verdade, quanto mais bem sucedidas foram suas
campanhas nos campos de batalha mais seus inimigos envenenavam o rei e seus
herdeiros, com o argumento de que ele seria uma ameaça à sucessão e que
ambicionava tomar para si a coroa e o amor dos seus súditos.
Nisto o livro de Pesnot se mostra extremamente
atual! É impressionante notar que trezentos anos depois da morte de Luis XIV a
política cortesã continua tendo as mesmas características, com um exército de
puxa-sacos distorcendo o julgamento do rei de plantão, fazendo com que seja
mais negócio ser um cortesão dócil e inofensivo, do que ser um gestor eficiente
e dotado de luz própria.
Como avisava Augusto dos Anjos há mais de cem
anos: a mão que afaga é a mesma que apedreja!
Demorou um tempo para que Felipe decifrasse o
enigma sobre quem estava por trás dos constantes reveses políticos que ele
sofria mas, quando ele estava no fundo do poço, quando sua conduta libertina e
sua nem sempre bem disfarçada ambição pela coroa espanhola – sim, ele tinha sua
parcela de culpa – tinham servido mais uma vez aos seus adversários para
manchar e corromper sua imagem perante o tio-rei, ele se vê bafejado pela
sorte, se é que se pode chamar a morte de familiares próximos de sorte.
Entre 1711 e 1712 morreram vítimas de um surto
de escarlatina: o Delfim (ou seja, o príncipe herdeiro), pai do Rei de Espanha,
primo legítimo de Felipe e um dos seus principais adversários na corte; o filho
mais velho do Delfim, que seria o segundo na linha de sucessão real e sua
esposa; e, também o neto mais velho do rei Luis XIV. De repente, em menos de um
ano, morreram os 3 primeiros nomes na linha de sucessão real e o próximo herdeiro
– que seria o futuro Luis XV – tinha apenas 2 anos de idade.
Claro que os adversários de Felipe viram nesta
sucessão de adventos fatais o risco a que estariam expostos e trataram de
acusá-lo de ter envenenado toda a família real. Diante do absurdo da acusação,
quando Luis XIV morre em 1715 deixando como herdeiro seu bisneto com apenas 5
anos de idade, Felipe se torna o Regente e o todo poderoso da França,
mostrando a face igualmente enigmática e surpreendente da política.
Apesar de Felipe ser o duque de Chartres, a
cidade só aparece na história no título honorifico da personagem principal. A
maior parte dela se passa em Versailles, onde Luis XIV mantinha sua corte, no
Palácio de Saint Cloud, residência do Duque de Orleans e no Palais Royal, que
era a casa da família Orleans na cidade de Paris.
Chartres é uma pequena cidade nas imediações de
Paris e é uma das alternativas de caminho para aqueles que saem da capital
francesa para o Vale do Loire (a outra, mais usada, passa por Orleans). Com um
centro histórico bem preservado, a cidade convida o turista para boas
caminhadas em suas ruas de paralelepípedos e para aproveitar da paz e da tranquilidade
que é garantia para quem a visita.
Sua principal atração é a catedral consagrada a
Nossa Senhora, que foi construída no século XII, tendo sido reconstruída
algumas vezes nos seus quase mil anos de existência. O edifício atual é de
1260, com importantes acréscimos realizados durante o século XVI.
Além de
representar o auge da arquitetura gótica francesa, a catedral é visitada
anualmente por milhares de turistas interessados nos seus magníficos vitrais,
pois na Notre Dame de Chartres está o mais importante conjunto de vitrais do
século XIII que pode ser apreciado, em toda sua beleza, durante um passeio pela
nave da igreja num fim de uma tarde de outono.
São tantas e tão variadas as histórias contadas
por meio dos vitrais que justificam o título de “a Bíblia feita de pedra” com milhares
de estátuas e de personagens bíblicos representados tanto nos vitrais como nas
fachadas do templo. Ainda que não seja um enigma, não há como decifrar todas suas
referências ao Livro Sagrado sem o apoio de um guia ou dos panfletos que ficam
à disposição dos turistas.
Depois de ver a catedral o visitante pode voltar
a passear pelas ruas do centro da cidade e aproveitar para fazer um lanche
rápido antes de seguir sua viagem porque, apesar da beleza da catedral e da
tranqüilidade do centro da cidade, só se passa por Chartres a caminho de outro
lugar: como no caso do nosso romance, Felipe foi Duque de Chartres até virar
Duque de Orleans, mas queria mesmo era governar a Espanha e a França.