Arbeit macht frei... O
trabalho liberta!
A frase inscrita no
portão do campo nazista em Dachau, na Baviera, poderia até ser entendida como
um exemplo da fina ironia do Terceiro Reich, não fosse a sombria verdade sobre
aquele que se converteu no protótipo para uma dos mais atrozes instrumentos da
máquina de guerra alemã durante a Segunda Guerra Mundial: os campos de
concentração.
Não fosse, ademais, o
fato que naquele campo, e apenas nele, mais de 30 mil vidas teriam sido
ceifadas e outras centenas de milhares tiveram seus corpos torturados e suas
almas mutiladas.
Hoje, o campo de
concentração de Dachau é um museu aberto ao público de todas as nações e um
passeio de fácil acesso, especialmente para aqueles que estão passando uns dias
na belíssima cidade de Munique, distando cerca de 20 quilômetros da capital da
Baviera.
Dachau, a cidade que
lhe empresta o nome, é uma pequena e simpática urbe, como muitas típicas da
região, com seus vinte e poucos mil habitantes, com casinhas alinhadas, ruas
agradáveis de paralelepípedo, uma igreja protestante reconstruída depois da
segunda guerra e uma tranqüilidade que, para alguns, pode ser até entediante.
Além do campo de
concentração, a outra atração raramente visitada pelos turistas que para ali se
deslocam, é o Palácio da cidade. Primeiro palácio de verão da dinastia
Wittlesbach, Duques da Baviera, o palácio foi originalmente construído entre
1508 e 1579. Durante o Século XVIII o Palácio passou por sua primeira grande
reforma e mais adiante, já no Século XIX, durante seu reinado, o Rei Max Joseph
I demoliu 3 das 4 alas do palácio, de modo que para o visitante de hoje, o
Palácio é uma belo edifício do Século XIX, com um café exclusivo, que
proporciona uma muito bela vista da cidade e dos seus arredores.
O campo de
concentração, assim, é a principal atração e motivação para os turistas que visitam
Dachau. Estivemos lá em um lindo dia de outono. O céu estava de um azul de
cinema e a temperatura era mais que agradável para um passeio ao ar livre. Mesmo assim, era
impossível não sentir a atmosfera opressora do ambiente, a começar das grades
de ferro dos portões, passando pelas celas em que muitos ficaram presos por
anos a fio ou dos relatos de passagens mais horrorosas e torturas praticadas
contra aquelas pessoas de uniforme listrado, coisas absolutamente
inconcebíveis...
Por conta do seu
caráter de protótipo, foi no campo de concentração de Dachau muitas das
técnicas de tortura foram inicialmente testadas, como também, foram diversos os
experimentos realizados com seres humanos, desde os mais simples, como para
testar quanto tempo uma pessoa conseguiria sobreviver em água em temperaturas congelantes,
até testes com drogas e tratamentos experimentais os mais horríveis. Isso sem
falar da visita aos fornos onde milhares de corpos foram queimados ou nas salas
de banho com chuveiros de gás venenoso.
A mim, pareceu-me
impossível circular pelas dependências do campo de concentração sem sentir
pesar sobre mim a tragédia de muitas gerações. Angústia pelo sofrimento das
pessoas que foram brutalizadas naquelas dependências, despidas da mais
elementar condição de humanidade, mas igualmente deprimido por aquelas pessoas
que foram capazes de cometer tamanhas atrocidades, pessoas que, provavelmente,
10 anos antes você as encontraria em um café no centro de Munique lendo o
jornal ou saindo do trabalho em uma indústria depois de mais um dia para tomar
uma cerveja no caminho para suas famílias. Homens e mulheres respeitáveis que
durante anos sujeitaram às piores condições homens e mulheres igualmente
respeitáveis, apenas porque eram judeus, ciganos, negros, gays ou opositores do
regime.
Essa atmosfera de
opressão, em menor medida, contamina o livro A Costureira de Dachau
escrito pela inglesa Mary Chamberlain. O livro conta a história de Ada Vaughan,
uma jovem londrina, de origem humilde, muito bonita e exímia costureira, que no
auge dos seus 19 anos se apaixona por um homem mais velho, um charmoso conde
austro-húngaro e, contrariando seus pais e sua patroa de um ateliê de costura,
resolve passar um fim de semana com seu novo amado em Paris. Às vésperas do
início da guerra!
O idílio amoroso dos
primeiros dias do romance logo se transforma em clima pesado e sofrido quando a
guerra estoura e no esforço de fugir de volta para a Inglaterra via Bélgica,
Ada finda abandonada pelo seu querido Stanislau na cidade de Namur logo quando
os exércitos alemães iniciam o cerco à cidade. Desamparada e em desespero, Ada
consegue abrigo em um convento da cidade e disfarçada como na pele da Irmã
Clara é transferida, junto com as outras freiras de origem inglesa, para
trabalhar em um asilo para idosos no centro de Munique.
Neste asilo ela
conhece Herr Weiss, um velho e tarado professor que abusa da Irmã Clara e, em troca
de favores sexuais consegue que a moça vá trabalhar como costureira para a
mulher do comandante do campo de concentração de Dachau. É nesta casa, em regime de quase escravidão, que Ada∕Clara vai passar a maior parte dos cinco anos
da guerra, sofrendo com a perda de seu bebê e sendo vítima de abusos e maus tratos, tanto dos donos da casa como do
nobre professor Weiss, que vez ou outra vem visitá-la.
Nem mesmo o fim da
guerra, sua libertação do casa do comandante do campo de concentração e do seu retorno para a Inglaterra, fazem com que o clima do
livro se torne menos soturno ou menos triste. A recepção quando da sua chegada a
Londres é pior que ela podia imaginar e a vida na capital inglesa depois da
guerra é sofrida e especialmente difícil para uma mulher sozinha.
Mesmo que a história
flua bem e a leitura seja agradável, o sofrimento e as agruras de Ada são nossa
companhia durante praticamente toda a leitura do livro, desde o seu abandono em
Namur até a última página. Os breves momentos da história que proporcionam o afastamento
dos terrores da guerra e de suas seqüelas, logo se dissipam e o clima soturno e
opressor da dura realidade retorna.
Mais ou menos como na
visita ao campo de concentração, o livro nos deixa com um sentimento de que
existem momentos em que a humanidade é tão paradoxalmente desumana que não há
como compreendê-la, traduzi-la ou aceitá-la.
O sexismo, o racismo,
a nossa incapacidade de aceitar e respeitar o diferente, o outro, o alterno é
tão presente, tão comum que não há como visitar ou ler sobre Dachau e não pensar
no Charlie Hebdo, na Boate Bataclan, nas
torres gêmeas, nas chacinas de jovens nas favelas brasileiras ou na aterrorizante imagem de assistir
a um ser humano (???) assassinar outro com uma pedrada na cabeça enquanto ele dormia em uma
cidade qualquer desse nosso Brasil, só porque morava na rua.
Às vezes a vida, não o
trabalho, liberta o que há de pior em nós!!!!!