sábado, 5 de dezembro de 2015

Arbeit macht frei...





Arbeit macht frei... O trabalho liberta!

A frase inscrita no portão do campo nazista em Dachau, na Baviera, poderia até ser entendida como um exemplo da fina ironia do Terceiro Reich, não fosse a sombria verdade sobre aquele que se converteu no protótipo para uma dos mais atrozes instrumentos da máquina de guerra alemã durante a Segunda Guerra Mundial: os campos de concentração.

Não fosse, ademais, o fato que naquele campo, e apenas nele, mais de 30 mil vidas teriam sido ceifadas e outras centenas de milhares tiveram seus corpos torturados e suas almas mutiladas.

Hoje, o campo de concentração de Dachau é um museu aberto ao público de todas as nações e um passeio de fácil acesso, especialmente para aqueles que estão passando uns dias na belíssima cidade de Munique, distando cerca de 20 quilômetros da capital da Baviera.

Dachau, a cidade que lhe empresta o nome, é uma pequena e simpática urbe, como muitas típicas da região, com seus vinte e poucos mil habitantes, com casinhas alinhadas, ruas agradáveis de paralelepípedo, uma igreja protestante reconstruída depois da segunda guerra e uma tranqüilidade que, para alguns, pode ser até entediante.

Além do campo de concentração, a outra atração raramente visitada pelos turistas que para ali se deslocam, é o Palácio da cidade. Primeiro palácio de verão da dinastia Wittlesbach, Duques da Baviera, o palácio foi originalmente construído entre 1508 e 1579. Durante o Século XVIII o Palácio passou por sua primeira grande reforma e mais adiante, já no Século XIX, durante seu reinado, o Rei Max Joseph I demoliu 3 das 4 alas do palácio, de modo que para o visitante de hoje, o Palácio é uma belo edifício do Século XIX, com um café exclusivo, que proporciona uma muito bela vista da cidade e dos seus arredores.

O campo de concentração, assim, é a principal atração e motivação para os turistas que visitam Dachau. Estivemos lá em um lindo dia de outono. O céu estava de um azul de cinema e a temperatura era mais que agradável para um passeio ao ar livre. Mesmo assim, era impossível não sentir a atmosfera opressora do ambiente, a começar das grades de ferro dos portões, passando pelas celas em que muitos ficaram presos por anos a fio ou dos relatos de passagens mais horrorosas e torturas praticadas contra aquelas pessoas de uniforme listrado, coisas absolutamente inconcebíveis...

Por conta do seu caráter de protótipo, foi no campo de concentração de Dachau muitas das técnicas de tortura foram inicialmente testadas, como também, foram diversos os experimentos realizados com seres humanos, desde os mais simples, como para testar quanto tempo uma pessoa conseguiria sobreviver em água em temperaturas congelantes, até testes com drogas e tratamentos experimentais os mais horríveis. Isso sem falar da visita aos fornos onde milhares de corpos foram queimados ou nas salas de banho com chuveiros de gás venenoso.

A mim, pareceu-me impossível circular pelas dependências do campo de concentração sem sentir pesar sobre mim a tragédia de muitas gerações. Angústia pelo sofrimento das pessoas que foram brutalizadas naquelas dependências, despidas da mais elementar condição de humanidade, mas igualmente deprimido por aquelas pessoas que foram capazes de cometer tamanhas atrocidades, pessoas que, provavelmente, 10 anos antes você as encontraria em um café no centro de Munique lendo o jornal ou saindo do trabalho em uma indústria depois de mais um dia para tomar uma cerveja no caminho para suas famílias. Homens e mulheres respeitáveis que durante anos sujeitaram às piores condições homens e mulheres igualmente respeitáveis, apenas porque eram judeus, ciganos, negros, gays ou opositores do regime.

Essa atmosfera de opressão, em menor medida, contamina o livro A Costureira de Dachau escrito pela inglesa Mary Chamberlain. O livro conta a história de Ada Vaughan, uma jovem londrina, de origem humilde, muito bonita e exímia costureira, que no auge dos seus 19 anos se apaixona por um homem mais velho, um charmoso conde austro-húngaro e, contrariando seus pais e sua patroa de um ateliê de costura, resolve passar um fim de semana com seu novo amado em Paris. Às vésperas do início da guerra!

O idílio amoroso dos primeiros dias do romance logo se transforma em clima pesado e sofrido quando a guerra estoura e no esforço de fugir de volta para a Inglaterra via Bélgica, Ada finda abandonada pelo seu querido Stanislau na cidade de Namur logo quando os exércitos alemães iniciam o cerco à cidade. Desamparada e em desespero, Ada consegue abrigo em um convento da cidade e disfarçada como na pele da Irmã Clara é transferida, junto com as outras freiras de origem inglesa, para trabalhar em um asilo para idosos no centro de Munique.

Neste asilo ela conhece Herr Weiss, um velho e tarado professor que abusa da Irmã Clara e, em troca de favores sexuais consegue que a moça vá trabalhar como costureira para a mulher do comandante do campo de concentração de Dachau. É nesta casa, em regime de quase escravidão, que Ada∕Clara vai passar a maior parte dos cinco anos da guerra, sofrendo com a perda de seu bebê e sendo vítima de abusos e maus tratos, tanto dos donos da casa como do nobre professor Weiss, que vez ou outra vem visitá-la.

Nem mesmo o fim da guerra, sua libertação do casa do comandante do campo de concentração e do seu retorno para a Inglaterra, fazem com que o clima do livro se torne menos soturno ou menos triste. A recepção quando da sua chegada a Londres é pior que ela podia imaginar e a vida na capital inglesa depois da guerra é sofrida e especialmente difícil para uma mulher sozinha.

Mesmo que a história flua bem e a leitura seja agradável, o sofrimento e as agruras de Ada são nossa companhia durante praticamente toda a leitura do livro, desde o seu abandono em Namur até a última página. Os breves momentos da história que proporcionam o afastamento dos terrores da guerra e de suas seqüelas, logo se dissipam e o clima soturno e opressor da dura realidade retorna. 

Mais ou menos como na visita ao campo de concentração, o livro nos deixa com um sentimento de que existem momentos em que a humanidade é tão paradoxalmente desumana que não há como compreendê-la, traduzi-la ou aceitá-la.

O sexismo, o racismo, a nossa incapacidade de aceitar e respeitar o diferente, o outro, o alterno é tão presente, tão comum que não há como visitar ou ler sobre Dachau e não pensar no Charlie Hebdo, na Boate Bataclan, nas torres gêmeas, nas chacinas de jovens nas favelas brasileiras ou na aterrorizante imagem de assistir a um ser humano (???) assassinar outro com uma pedrada na cabeça enquanto ele dormia em uma cidade qualquer desse nosso Brasil, só porque morava na rua.


Às vezes a vida, não o trabalho, liberta o que há de pior em nós!!!!!