Não sei se por conta
dos 70 anos do fim da Segunda Grande Guerra ou por mera coincidência, mas nos
últimos meses inúmeros têm sido os livros – romances, diários, relatos –
tratando sobre eventos e curiosidades da guerra que matou milhões de pessoas e
transformou radicalmente o mundo em que vivemos.
Outro dia comecei a ler
O Rouxinol, romance histórico da inglesa Kristin Hannah que conta a história de
duas irmãs que por suas condições e circunstâncias acabam participando de maneiras
bem distintas da guerra na França.
Enquanto a irmã mais
velha, Vianne, que no começo do conflito já era casada e tinha filhos, precisa
se ajustar à realidade da ocupação alemã, sua irmã mais nova, Isabelle, com
pouco mais de 19 anos na época, se rebela e vai participar ativamente do
movimento de resistência francesa.
O romance, que se passa
entre a Paris ocupada, a pequena cidade ficcional de Carriveau no vale do Loire
e a fronteira da França com a Espanha, aproveita o dilema vivido pelas duas
irmãs Rossignol para apresentar o dilema que quase toda a população francesa
teve que enfrentar durante a Segunda Guerra, obrigada a conviver, compactuar e,
em muitos casos, colaborar com os ocupantes nazistas. Mas ao tempo que colaborava, se
revoltava, resistia e sabotava as tropas nazistas.
Assim no país, assim
entre as irmãs. Além de perder o marido para a guerra, que virou prisioneiro
logo nos primeiros meses do combate, Vianne tem os quartos da casa em que vive com
sua filha confiscados pelo exército alemão e durante toda ocupação é obrigada a
conviver e servir os oficiais alemães que ficam ali hospedados.
Sua irmã, ao contrário,
depois de expulsa de Paris pelo pai, chega a Carriveau para viver com a irmã,
mas logo se mostra incapaz de conviver com aquela situação de humilhante
dominação e finda por aderir ao movimento de resistência francesa, se tornando importante
agente do movimento, ajudando pilotos aliados que caem atrás das linhas alemãs
a escapar do país pela fronteira espanhola.
Claro que as diferentes
escolhas colocam as irmãs em posições antagônicas no palco da guerra e, em
certo sentido, permite que o leitor especule sobre o sentimento de “coisa mal
resolvida” do período em que parcela da população francesa, sob a batuta do
governo colaboracionista de Vichy e do Marechal Petáin, conviveu, transacionou,
lucrou e compactuou com o nazismo nas suas piores manifestações.
Talvez por isto que o
romance, embora pudesse proporcionar uma interessante viagem entre Paris e os
Pirineus, me leve para a antiga capital do governo colaboracionista, uma
pequena e pacata estância terapêutica, com suas águas minerais curativas,
localizada na parte central da França: Vichy.
Frequentada por suas
qualidades terapêuticas e medicinais desde tempos imemoriais, as fontes de
águas curativas de Vichy tiveram seu auge durante o período de Napoleão III, na
segunda metade do século XIX, quando reis, príncipes e a nobreza de boa parte
da Europa vinham à cidade-balneário para tratamentos, festas e, principalmente,
para verem e serem vistos.
Depois da Primeira
Grande Guerra, a cidade ficou esquecida até que, depois da invasão alemã em
1940 e do acordo firmado por Petáin com Hitler, Vichy foi elevada à categoria
de capital do governo colaboracionista, enquanto que na Inglaterra se
proclamava o governo da França Livre.
Estive em Vichy em
novembro de 2014 para comemorar o aniversário de 70 anos do meu pai. Naquele
momento eu estava em Paris, minha irmã Lília morando em Genebra e a minha outra
irmã, a Ana, estava em Poitiers fazendo seu mestrado. Precisávamos encontrar um
lugar para festejar que fosse equidistante para todos nós e a escolha recaiu
sobre Vichy.
Vichy é uma “pequena e
pacata cidade” no maciço central da França, com ruas arborizadas que ganham um
colorido todo especial nos meses de outono. Às margens do Rio Allier há um
parque público, com direito a calçadão e parquinhos para as crianças brincarem.
Nos dias de sol no outono ambos ficam apinhados de jovens famílias que
aproveitam os últimos dias de sol e algum calor antes da chegada do inverno.
São muito poucas as
referências do período em que a cidade foi capital da França. É verdade que no
parque defronte ao Cassino e à Ópera, onde estão algumas das fontes de águas
termais mais antigas, há uma placa em que o governo da França reconhece o
lastimável papel que desempenhou no triste evento que entrou para a história
como o massacre do Velódromo de Inverno, quando milhares de judeus franceses
foram entregues pelo Governo de Vichy aos campos de concentração alemães.
Depois de alguma
pesquisa ainda encontrei um livro que fala dos prédios da cidade que abrigaram
ministérios, embaixadas e outros órgãos governamentais durante o
período da ocupação, mas é só isto. A sensação é que ainda há um sentimento
local e nacional de vergonha por ter participado de uma ridícula farsa, um
governo fantoche e subalterno.
Em “O Rouxinol” há uma
tentativa, por parte da autora, de mostrar – não diria defender – as difíceis
escolhas a que foram expostas as pessoas que ficaram na área ocupada pelos
nazistas e que, para poderem sobreviver, de uma forma ou de outra precisaram
conviver com a nova realidade, trabalhando com e para os alemães, tentando
levar uma vida “normal” nos mais de quatro anos que grande parte da França
ficou sob o tacão do nazismo.
Ao fim, o leitor fica com
a sensação de que a irmã que fica e que “colabora” acaba sendo tão brava e tão
sobrevivente quanto aquela que se converte em heroína da resistência francesa. É
como se o livro dissesse que não há uma forma apenas de resistir a qualquer
tipo de opressão.
Para nós, que estivemos
em Vichy setenta anos depois que a cidade deixou de ser capital de uma França
dividida, o que valeu mesmo foi o excelente jantar no restaurante Maison
Decoret, onde também estávamos hospedados, quando comemoramos o aniversário do
Dr. Paulo e reafirmamos nossa convicção, que é mensagem do livro de Kristin Hannah,
que qualquer que seja a adversidade, é na família que encontramos a força para seguir
vivendo.
Pena que o Carlos não pôde
ir.