Insuflados pelo discurso presidencial, cheio de sugestivas insinuações quanto à ilegalidade do processo eleitoral em que foi derrotado, os partidários de Trump marcharam pela Pennsylvania Avenue em direção à sede do parlamento onde, depois de atos de vandalismo e violência generalizada, foram expulsos, sem conseguir seus objetivos e deixando para trás quatro mortos.
A inusitada condução da sucessão presidencial contrasta, em tudo, com o clima de respeito e com o ambiente pacífico que quase sempre marcaram a vida na capital norte americana.
Em abril de 2019 ali estive para participar de um evento promovido pelo Banco Mundial para apresentar a bem sucedida experiência de gestão do saneamento rural patrocinada pelo Governo do Estado do Ceará e pela CAGECE, o SISAR.
Como cheguei na cidade na noite do sábado que antecedia à abertura do evento, depois de um longo voo com conexões em São Paulo e no Panamá, aproveitei o domingo livre para turistar em suas áreas centrais. Havia muito tempo desde a última vez que ali estivera e, aproveitando o lindo dia que fazia, fui rever a Washington monumental.
Embora fosse uma boa caminhada, como era um domingo livre, decidi ir do meu hotel em Georgetown até a Casa Branca caminhando. Apesar do sol e de praticamente nenhuma nuvem no céu, o dia estava agradável e corria um vento frio que vinha do Potomac o que me obrigava a evitar os locais mais sombreados.
Depois de passear pelas belas ruas do bairro, com suas casinhas coloridas, atravessei a ponte em direção à Pennsylvania Avenue e de lá alcancei a Casa Branca pela Praça Lafayette, onde alguns gatos pingados protestavam contra o governo sobre temas variados sob o olhar vigilante dos policiais que guardavam aquela parte da residência presidencial.
Depois de acompanhar o movimento e tentar tirar algumas boas fotos do local, contornei o prédio da residência presidencial, atravessei a elipse e cheguei ao obelisco que homenageia George Washington.
O mês de abril é o período em que as cerejeiras florescem e, naquele ano, as inúmeras cerejeiras que ornamentam as calçadas e ruas que ligam os quase 4 km que separam o Capitólio ao Lincoln Memorial, produziam um espetáculo à parte, contrastando o rosa de suas flores com o azul irretocável do céu.
As primeiras cerejeiras chegaram à capital americana como um presente do governo japonês, depois da Segunda Guerra, e nas imediações do Lincoln Memorial há um jardim japonês e uma referência à data em que as primeiras árvores chegaram em solo americano.
Era domingo, mas os monumentos não estavam muito cheios e, consequentemente, o passeio rendeu. Optei por começa-lo tomando à esquerda e pegar o rumo do prédio que abriga as duas casas legislativas americanas. No caminho, aproveitei para apreciar a arquitetura dos prédios do Smithsonian e entrei no Castelo de tijolos vermelhos, onde fiz uma rápida pausa da caminhada e um lanche rápido.
De lá, como colecionador de moedas, fiz uma visita ao Bureau of Engraving and Printing para atualizar a coleção de quarters americanos e segui para os memoriais em homenagem a Jefferson, Lincoln, Luther King, Roosevelt e aos milhares de americanos que deram sua vida nos muitos conflitos armados que aquele país se envolveu.
Não há como fazer este circuito e não se impressionar com o respeito com que os americanos tratam suas instituições, sua história e seus heróis, conhecidos e desconhecidos. O que faz com que os eventos de janeiro de 2021 sejam ainda mais surpreendentes.
Como se aproximava o fim do dia, tomei o caminho de volta a Georgetown pois tinha combinado com alguns companheiros do evento do Banco Mundial de tomar um vinho em um bar às margens do Potomac, curtindo uma boa música e apreciando o por de sol, que naquela tarde foi espetacular.
No trajeto, nas proximidades do hotel, parei em uma pequena livraria e por menos de 10 dólares comprei um livro que tratava de um dos personagens homenageados nos monumentos e até hoje reverenciado por sua decisiva participação na Independência dos EUA: Thomas Jefferson.
Friends Divided, de autoria do ganhador do Prêmio Pulitzer Gordon S. Wood, é uma dupla biografia, tendo como eixo orientador a fundação da República Norte Americana e as relações pessoais e políticas de dois dos principais “Fouding Fathers”: Jefferson e John Adams.
Enquanto Jefferson ganhou notoriedade como o autor da Declaração de Independência assinada em 4 de julho de 1776, Adams foi quem concebeu as principais instituições da nascente república democrática e orientou a redação da maior parte das constituições das províncias que se transformavam em estados.
Oriundos de experiências de vida muito distintas - enquanto Adams era um advogado de famílias pobre no Norte, Jefferson era rico proprietário de terras e de escravos no Sul - os dois se tornaram amigos durante as temporadas passadas na Filadélfia, construindo a nova nação, enquanto Washington combatia os ingleses nas Guerras da Independência.
As divergências políticas que nasceram neste processo levaram ao afastamento dos amigos, justificando o título do livro de Wood e evidenciando como a nação americana fora resultado, desde o nascedouro, da possibilidade que antagonistas no pensamento e adversários na política fossem capazes de construir a nação que, 200 anos depois, seria a principal potência mundial.
O respeito mútuo e a moderação, que normalmente a velhice é capaz de trazer, fez com que ao final da vida, Adams e Jefferson se reconciliassem e voltassem a se corresponder como bons e velhos amigos, isto depois de terem sido o segundo e o terceiro presidentes dos EUA.
Lembrando os ensinamentos do livro de Wood e voltando à Washington do Século XXI, é impossível não nos perguntarmos qual foi o momento em que os EUA e, a meu ver, quase todo o mundo, perdeu a crença no diálogo, no entendimento e na capacidade das instituições democráticas de nos ajudar a construir um mundo melhor, onde a busca da felicidade seja direito inalienável de todos.