Uma decisão impensada, uma pequena mudança, uma escolha não
feita, um não mal colocado, podem mudar a história, podem mudar as pessoas,
podem afetar as nossas vidas?
Uma viagem a Portugal poderia – ou NÃO – começar
por onde se deu início à construção da nação que anos depois se tornaria o
principal centro da expansão ultramarina europeia e centro de um império
global: a parte mais antiga de Lisboa.
Surpreendentemente, muitos dos que visitam a capital
portuguesa acabam por NÃO visitar o Castelo de São Jorge. Ele que do alto da colina
mais alta do centro histórico, há mais de 1000 anos contempla o movimento da cidade e vigia a
entrada do porto que naturalmente ali se forma por conta da curva que faz o
Rio Tejo antes de avançar com suas águas na direção do Oceano Atlântico.
Foi essa privilegiada posição que atraiu os Romanos que
expulsaram os Lusitanos e depois foram expulsos por Suevos, pelos Visigodos que os
sucederam e mais adiante pelos mouros que por volta do século VIII ocuparam a
área do castelo, reforçaram suas defesas, construíram a cerca moura e os
traçados de ruas e casas que condicionaram o que hoje é a Alfama, bairro
tradicionalíssimo da cidade, com seus deliciosos restaurantes e interessantes
casas de fado.
No início do século XII quando o Condado Portucalense
declarou sua autonomia do Reino de Leão e se transformou no reino de Portugal,
ocupando as terras entre o Minho e o Douro, a cidade de Lisboa continuava –
depois de idas e vindas – nas mãos dos Mulçumanos e a sua retomada era
importante no processo de reconquista da península Ibérica pelos cristãos.
Em 1147 o Rei Afonso Henriques deu início ao cerco à cidade,
missão fundamental para a consolidação do novo reino e, de certa maneira,
garantia de que os reis de Leão e Castela não reclamariam que o país voltasse à
antiga situação de condado. A tarefa se mostrava difícil para o rei lusitano e
para os parcos recursos da nascente nobreza lusa. Não fosse o apoio dos
cruzados que, no seu caminho para o Oriente, fizeram uma escala na foz do Tejo
e aceitaram apoiar a cruzada lusitana, Dom Afonso Henriques, provavelmente, não
teria sido bem sucedido.
Aqui, neste ponto da história entra o livro que nos
acompanha nesta viagem e também a explicação do porque o texto começar como
começou. O livro, do único autor da língua portuguesa a receber um Nobel de
Literatura, José Saramago, A História do Cerco de Lisboa, conta
a história de Raimundo Benvindo Silva, revisor encarregado de tratar o livro
História do Cerco de Lisboa que resolve, por razões que a própria razão
desconhece, intervir no texto alheio e modificar a frase original que passa a
ser: “e os cruzados decidiram que os portugueses NÃO terão sua ajuda”.
A partir
daí a vida de Raimundo e da editora onde ele trabalha passa por uma revolução,
com crises entre chefes e funcionários, editores, revisores e escritores, o que
vai ser o mote de boa parcela do romance.
A mudança incidental patrocinada por Raimundo
Benvindo também transforma a história do cerco à cidade –
agora sem os cruzados – que Saramago continua a narrar, apresentando seus personagens: el-Rey Dom Afonso, o
capitão Mem Ramires, o soldado Mogueime e toda as desventuras do exército luso
a partir daquele não.
Assim, o autor vai construindo uma trama que mistura a
história que foi com a que poderia ter sido e a história atual de Raimundo e
sua paixão pela nova chefe dos revisores, Maria Sara, que chega à empresa para
evitar que problemas iguais se repitam e para balançar o coração do revisor.
Os caminhos trilhados pelas personagens – tanto os do século
XII como os do século XX – são tão tortuosos quanto as ruelas da Alfama e da
freguesia do Castelo que nos conduzem até a porta de São Jorge e as belezas do
castelo. Ao longo da escalada – é uma longa subida – o turista mais observador
poderá encontrar troços remanescentes da antiga cerca moura, que
hoje serve de fundações para muitos dos prédios, muros de arrimo e ruelas que
cortam os bairros da freguesia.
Aqui e ali os mais atentos vão ver no beco do Arco Escuro,
na Porta do Mar, no Arco de Jesus ou na rua de Judiaria reminiscências das
pedras da antiga muralha que serviu de obstáculo para as personagens da
conquista – as de Saramago e as da vida real – e que os submeteram a quase 100 dias de um
cerco muito duro já que a muralha que defendia Al-Usbuna (ou Lissabona) cercava
um perímetro de 1250 metros, com uma largura que variava de 2 a 2,5 metros,
algumas portas permanentemente fechadas e torres que apoiavam a tenaz defesa dos mouros.
Reza a lenda que a conquista só foi possível porque o
cavaleiro Martim Moniz, ao perceber que um dos portões estava aberto, sacrificou
sua vida ao usar o próprio corpo para evitar que os mouros conseguissem
trancá-lo e assim permitir que seus colegas portugueses entrassem na cidade
murada.
O livro de Saramago traduz a dificuldade que os portugueses
enfrentaram durante o período do cerco tanto nos desafios enfrentados pelo
capitão Men Ramires como pelo soldado Mogueime que assume papel de
representante dos interesses dos soldados lusos que não se conformavam em serem
discriminados em relação ao tratamento que recebiam ou receberiam os
estrangeiros que apoiassem El-Rey Dom Afonso na conquista da cidadela.
Depois que os cristãos ocuparam Lisboa a cidade ainda
resistiu a duas investidas dos mouros que tentaram retomá-la e, uma vez
consolidada a conquista, ela foi transformada em capital do reino português
e o castelo de São Jorge passou a abrigar a corte, acolhendo reis, generais,
bispos e a fidalguia lusa.
O que resta da Lissabona dos primeiros anos de
domínio português, além dos remanescentes da cerca moura, é o clima de cidade
interiorana da Alfama com suas casas apinhadas umas sobre as outras, a beleza
do Castelo de São Jorge – hoje convertido em museu – a perspectiva que se tem
da cidade desde a Colina e as igrejas que aparecem a cada esquina, muitas delas
reconstruídas depois do terremoto de Lisboa no século XVIII, com destaque para
a Sé de Lisboa.
Esta última merece um tempinho a mais da nossa atenção. Construída,
por volta de 1150, no local de uma antiga mesquita para o cruzado inglês
Gilbert de Hastings, nomeado primeiro bispo de Lisboa, a catedral
sofreu com os terremotos que abalaram a cidade tanto no século XV como no
XVIII, o que obrigou que ela fosse várias vezes renovada e a transformada numa
grande mistura de estilos.
Apesar do interior escuro e austero das três naves que a formam, algumas capelas e memoriais de reis, fidalgos e heróis dos muitos
séculos da história portuguesa já justificariam a visita, ademais, a Sé abriga
a pia onde foi batizado Santo Antônio, no distante ano de 1195. A peça mais
importante da coleção, entretanto, são os restos mortais de São Vicente,
trasladados para a catedral em 1173 que podem ser visitado na sala do tesouro, junto com trajes, relíquias e outras peças de valor.
O museu do Castelo de São Jorge também tem um número
razoável de atrações e, na minha opinião, vale a pena aproveitar um fim de
tarde de primavera no pátio do Café do Castelo para tomar um vinho branco ou um
café com pastéis de nata, descansando de um dia inteiro
de caminhadas pelas ruas da Alfama e pelas muralhas, apreciando sua beleza e curtindo seu agradável clima de cidade pequena.
Neste momento o visitante poderia se perguntar: e se os
cruzados não tivessem apoiado Dom Afonso Henriques? O que um não dito na
hora errada teria afetado a história de Portugal? E como afetou a do revisor de
Saramago?
No livro, apesar das desventuras – tanto de El-Rey e sua
trupe, como dos funcionários da editora – Lisboa ainda está Lisboa e ainda é
portuguesa, Raimundo Benvindo ainda é Raimundo e ama Maria Sara. Mas, certamente, o Castelo não seria dedicado a São Jorge,
já que este é o santo da devoção dos cavaleiros e dos Cruzados!