domingo, 21 de julho de 2013

São Jorge de Lisboa




Uma decisão impensada, uma pequena mudança, uma escolha não feita, um não mal colocado, podem mudar a história, podem mudar as pessoas, podem afetar as nossas vidas?
Uma viagem a Portugal poderia –  ou NÃO – começar por onde se deu início à construção da nação que anos depois se tornaria o principal centro da expansão ultramarina europeia e centro de um império global: a parte mais antiga de Lisboa.

Surpreendentemente, muitos dos que visitam a capital portuguesa acabam por NÃO visitar o Castelo de São Jorge. Ele que do alto da colina mais alta do centro histórico, há mais de 1000 anos contempla o movimento da cidade e vigia a entrada do porto que naturalmente ali se forma por conta da curva que faz o Rio Tejo antes de avançar com suas águas na direção do Oceano Atlântico.
Foi essa privilegiada posição que atraiu os Romanos que expulsaram os Lusitanos e depois foram expulsos por Suevos, pelos Visigodos que os sucederam e mais adiante pelos mouros que por volta do século VIII ocuparam a área do castelo, reforçaram suas defesas, construíram a cerca moura e os traçados de ruas e casas que condicionaram o que hoje é a Alfama, bairro tradicionalíssimo da cidade, com seus deliciosos restaurantes e interessantes casas de fado.

No início do século XII quando o Condado Portucalense declarou sua autonomia do Reino de Leão e se transformou no reino de Portugal, ocupando as terras entre o Minho e o Douro, a cidade de Lisboa continuava – depois de idas e vindas – nas mãos dos Mulçumanos e a sua retomada era importante no processo de reconquista da península Ibérica pelos cristãos.
Em 1147 o Rei Afonso Henriques deu início ao cerco à cidade, missão fundamental para a consolidação do novo reino e, de certa maneira, garantia de que os reis de Leão e Castela não reclamariam que o país voltasse à antiga situação de condado. A tarefa se mostrava difícil para o rei lusitano e para os parcos recursos da nascente nobreza lusa. Não fosse o apoio dos cruzados que, no seu caminho para o Oriente, fizeram uma escala na foz do Tejo e aceitaram apoiar a cruzada lusitana, Dom Afonso Henriques, provavelmente, não teria sido bem sucedido.

Aqui, neste ponto da história entra o livro que nos acompanha nesta viagem e também a explicação do porque o texto começar como começou. O livro, do único autor da língua portuguesa a receber um Nobel de Literatura, José Saramago, A História do Cerco de Lisboa, conta a história de Raimundo Benvindo Silva, revisor encarregado de tratar o livro História do Cerco de Lisboa que resolve, por razões que a própria razão desconhece, intervir no texto alheio e modificar a frase original que passa a ser: “e os cruzados decidiram que os portugueses NÃO terão sua ajuda”.
A partir daí a vida de Raimundo e da editora onde ele trabalha passa por uma revolução, com crises entre chefes e funcionários, editores, revisores e escritores, o que vai ser o mote de boa parcela do romance.
A mudança incidental patrocinada por Raimundo Benvindo também transforma a história do cerco à cidade – agora sem os cruzados – que Saramago continua a narrar, apresentando seus personagens: el-Rey Dom Afonso, o capitão Mem Ramires, o soldado Mogueime e toda as desventuras do exército luso a partir daquele não.

Assim, o autor vai construindo uma trama que mistura a história que foi com a que poderia ter sido e a história atual de Raimundo e sua paixão pela nova chefe dos revisores, Maria Sara, que chega à empresa para evitar que problemas iguais se repitam e para balançar o coração do revisor.
Os caminhos trilhados pelas personagens – tanto os do século XII como os do século XX – são tão tortuosos quanto as ruelas da Alfama e da freguesia do Castelo que nos conduzem até a porta de São Jorge e as belezas do castelo. Ao longo da escalada – é uma longa subida – o turista mais observador poderá encontrar troços remanescentes da antiga cerca moura, que hoje serve de fundações para muitos dos prédios, muros de arrimo e ruelas que cortam os bairros da freguesia.

Aqui e ali os mais atentos vão ver no beco do Arco Escuro, na Porta do Mar, no Arco de Jesus ou na rua de Judiaria reminiscências das pedras da antiga muralha que serviu de obstáculo para as personagens da conquista – as de Saramago e as da vida real – e que os submeteram a quase 100 dias de um cerco muito duro já que a muralha que defendia Al-Usbuna (ou Lissabona) cercava um perímetro de 1250 metros, com uma largura que variava de 2 a 2,5 metros, algumas portas permanentemente fechadas e torres que apoiavam a tenaz defesa dos mouros.
Reza a lenda que a conquista só foi possível porque o cavaleiro Martim Moniz, ao perceber que um dos portões estava aberto, sacrificou sua vida ao usar o próprio corpo para evitar que os mouros conseguissem trancá-lo e assim permitir que seus colegas portugueses entrassem na cidade murada.

O livro de Saramago traduz a dificuldade que os portugueses enfrentaram durante o período do cerco tanto nos desafios enfrentados pelo capitão Men Ramires como pelo soldado Mogueime que assume papel de representante dos interesses dos soldados lusos que não se conformavam em serem discriminados em relação ao tratamento que recebiam ou receberiam os estrangeiros que apoiassem El-Rey Dom Afonso na conquista da cidadela.
Depois que os cristãos ocuparam Lisboa a cidade ainda resistiu a duas investidas dos mouros que tentaram retomá-la e, uma vez consolidada a conquista, ela foi transformada em capital do reino português e o castelo de São Jorge passou a abrigar a corte, acolhendo reis, generais, bispos e a fidalguia lusa.

O que resta da Lissabona dos primeiros anos de domínio português, além dos remanescentes da cerca moura, é o clima de cidade interiorana da Alfama com suas casas apinhadas umas sobre as outras, a beleza do Castelo de São Jorge – hoje convertido em museu – a perspectiva que se tem da cidade desde a Colina e as igrejas que aparecem a cada esquina, muitas delas reconstruídas depois do terremoto de Lisboa no século XVIII, com destaque para a Sé de Lisboa.
Esta última merece um tempinho a mais da nossa atenção. Construída, por volta de 1150, no local de uma antiga mesquita para o cruzado inglês Gilbert de Hastings, nomeado primeiro bispo de Lisboa, a catedral sofreu com os terremotos que abalaram a cidade tanto no século XV como no XVIII, o que obrigou que ela fosse várias vezes renovada e a transformada numa grande mistura de estilos.

Apesar do interior escuro e austero das três naves que a formam, algumas capelas e memoriais de reis, fidalgos e heróis dos muitos séculos da história portuguesa já justificariam a visita, ademais, a Sé abriga a pia onde foi batizado Santo Antônio, no distante ano de 1195. A peça mais importante da coleção, entretanto, são os restos mortais de São Vicente, trasladados para a catedral em 1173 que podem ser visitado na sala do tesouro, junto com trajes, relíquias e outras peças de valor.
O museu do Castelo de São Jorge também tem um número razoável de atrações e, na minha opinião, vale a pena aproveitar um fim de tarde de primavera no pátio do Café do Castelo para tomar um vinho branco ou um café com pastéis de nata, descansando de um dia inteiro de caminhadas pelas ruas da Alfama e pelas muralhas, apreciando sua beleza e curtindo seu agradável clima de cidade pequena.

Neste momento o visitante poderia se perguntar: e se os cruzados não tivessem apoiado Dom Afonso Henriques? O que um não dito na hora errada teria afetado a história de Portugal? E como afetou a do revisor de Saramago?
No livro, apesar das desventuras – tanto de El-Rey e sua trupe, como dos funcionários da editora – Lisboa ainda está Lisboa e ainda é portuguesa, Raimundo Benvindo ainda é Raimundo e ama Maria Sara. Mas, certamente, o Castelo não seria dedicado a São Jorge, já que este é o santo da devoção dos cavaleiros e dos Cruzados!

domingo, 14 de julho de 2013

Toledo, Zaragoza, Tordesilhas e a Espanha dos Tratados.


Desde a adolescência a Espanha, ou melhor, os reinos de Castela, Aragão e Leão fazem parte desse imaginário histórico da construção do Brasil e, consequentemente, do que e de quem somos.
Portugal, a pátria que nos pariu (ou descobriu, ou achou, ou fundou) é ela própria, cria de Castela. O pedaço de terra achado por Pedro Álvares Cabral teve sua certidão de nascimento em um tratado firmado na desconhecida – provavelmente assim permaneceria se não fora o tratado – cidade de Tordesilhas.

A falta de quaisquer outros atrativos – pelo menos que eu tenha ouvido falar – fez com que nunca colocasse esta cidade como prioridade nas vezes que fui à Espanha. E olha que estive até perto de lá nas visitas que fiz a Ávila e Segóvia.
Por outro lado – ou melhor, para o outro lado para quem sai de Madri – está a cidade que durante boa parte da história medieval da península Ibérica teve posição política importante e foi capital de Reinos e Taifas: Toledo.

Durante os séculos XIV e XV a corte de Leão e Castela costumava se reunir em várias cidades – a ideia de capital administrativa como temos hoje não fazia muito sentido já que o governo estava onde o rei estivesse – mas certamente Toledo era uma das mais frequentadas.
O livro 1494, O Papa, os Reis e o Mercenário de Stephen R. Brown não esclarece a razão, mas provavelmente, na época da assinatura do tratado, a corte de Fernando e Isabel – os famosos reis católicos – devia estar reunida em Valladolid, para que o evento ocorresse ali perto em Tordesilhas.

Se o texto não esclarece este ponto da historia, ele é rico em detalhes e informações sobre os estados ibéricos da era medieval e a formação do que hoje conhecemos como Espanha.
O autor conta da rebeldia de Isabel que, contrariando os partidários de seu irmão – Henrique IV, o Impotente - que articulavam o seu casamento com o herdeiro do trono português, preferiu se casar às escondidas com o herdeiro do trono de Aragão, seu primo Fernando, numa aliança que consolidaria a reconquista da Península Ibérica pelo catolicismo e o fim de mais de 700 anos de influência muçulmana naquela região.

O livro também revela o importante papel desempenhado por Rodrigo Bórgia, bispo de Valência que, com o apoio de Fernando – político e militar – veio a ser eleito papa em 1492, mesmo ano em que Colombo chegou às Américas, também com o patrocínio dos reis católicos.Bórgia também tinha participado das negociações junto ao Papa Sisto IV para autorizar o casamento entre os primos e, poucos anos depois, foi quem deu o título de Reis Católicos para Fernando e Isabel.
Além do título, Rodrigo Bórgia, agora Papa Alexandre VI, editou 3 bulas papais que viraram de ponta cabeça a expansão marítima europeia e colocou ainda mais lenha na fogueira das disputas entre Portugal e Castela.

A primeira delas Inter Caetera, dava base legal para a reivindicação europeia sobre as terras descobertas, garantia a justificação para a conquista da América indígena pelos europeus e reconhecia todo poder e jurisdição aos reis de Castela e Leão sobre os lugares descobertos “pelo nosso adorado filho Cristóvão Colombo”.Os reis católicos, entretanto, acharam pouco e pressionaram Alexandre VI por mais.

Em resposta, a segunda bula papal, Eximia Devotiones, garantia direitos iguais à Espanha e Portugal sobre as terras descobertas e estabelecia uma primeira linha divisória do mundo descoberto e a descobrir, que ficaria a cem léguas dos Açores e de Cabo Verde.
O rei português, Dom João II, não acreditava nos rumos que as decisões papais estavam tomando, mas ele ficou realmente furioso quando a terceira bula papal reconheceu os direitos portugueses apenas sobre as terras que estivessem sob sua posse até o natal de 1492.

Não querendo confrontar diretamente o poder papal o rei resolveu abrir negociações diretas com Fernando e Isabel, mandando seus embaixadores para Tordesilhas para negociar o famoso tratado.

Ainda que não tenha sido o palco do acordo, Toledo é a cidade mais representativa deste período da história espanhola. Tendo sido a capital de uma das taifas mais ricas do Al-Andalus sua tomada pelos cristãos em 1085, marcou o início da reconquista da península Ibérica e reforçou o caráter religioso desta guerra.
A cidade murada, que fica a 70 quilometros de Madri e com ligação de trens que partem da estação Atocha regularmente, é passeio imperdível. Mais que a beleza dos trabalhos em aço da cidade, com suas belas espadas e armaduras, a cidade é ponto de encontro das 3 culturas conviveram na Ibéria durante tantos anos. Mesquitas, igrejas e sinagogas se misturam e se sobrepõem de modo a evidenciar como a cidade foi plural e cosmopolita durante seu auge.

A visita à catedral gótica, construída no século XII é imperdível, os vários portões que compõem as muralhas da cidade, os recentes achados das pesquisas arqueológicas sobre o período romano e visigótico da cidade, assim como a Igreja de Santo Tomé, onde se pode apreciar o belo trabalho de El Greco - o Enterro do Conde de Orgaz - mais que justificam um dia ou dois passados na cidade.
Essa pintura, por sinal, faz parte de uma das minhas mais antigas lembranças da Espanha: Quando adolescente, junto com meus pais e meu irmão Carlos, eu fui pela primeira vez a Toledo e minha mãe nos fez pegar uma fila que me pareceu interminável, sob o calor do verão da Mancha, para ver a tal pintura.

Do auge da minha intolerância juvenil não pude deixar de expressar minha opinião quando finalmente entramos na pequena sala onde está a famosa obra:
É só isso? perguntei à minha mãe, sem esconder o sarcasmo por trás das palavras. Acho que o elevado número de testemunhas impediu que minha mãe me enforcasse ali mesmo! E com razão! Como sempre têm as mães.
Só o tempo me ensinou a apreciar as figuras esguias de El Grego, suas mãos compridas e impressionantes e um belo jogo de luzes que faz dele um dos principais representantes da pintura medieval da Europa.

Depois de Toledo os cristãos avançaram cada vez mais para o sul da península e foram os reis católicos que concluíram esse processo depois de séculos.
Também foi sob o patrocínio de Fernando e Isabel que a Espanha embarcou na aventura ultramarina que se converteu na colonização das Américas e do globo, só que agora com a concorrência de franceses, holandeses e ingleses que também avocaram para si o direito do mar livre, como nos conta Stephen Brown.

Pouco mais de 30 anos depois do Tratado de Tordesilhas portugueses e espanhóis voltaram a se reunir para discutir uma nova linha divisória do globo e de seu poderio, no debate do que veio a ser chamado de o antimeridiano, ou seja, o lugar por onde passaria a linha do tratado no outro lado do mundo. Desta vez a cidade escolhida para abrigar as negociações foi Zaragoza.
Situada no meio do caminho entre Madri (Leão e Castela) e Barcelona (Aragão) e às margens do importante Rio Ebro – de onde vem o nome Ibéria – a cidade alcançou seu apogeu durante o Império Romano, como importante entreposto comercial quando era chamada Caesar Augusta (que virou Sarakusta para os muçulmanos).

Ela tem, como ponto alto para os turistas e visitantes, o museu romano, que na verdade são vários museus: o porto, o belíssimo anfiteatro, os restos da muralha, as termas. Partes de um mesmo museu espalhado por todo o centro, permitindo ao viajante conhecer, simultaneamente, a cidade de hoje e sua versão da antiguidade.

A Basilica del Pilar, cuja construção teve início em 1681 (há registros de templos na localidade desde tempos imemoriais) e teve últimas intervenções no século XVIII, impressiona pelo seu porte monumental, sua beleza barroca e os afrescos pintados por Goya.

O Tratado de Zaragoza, como então já deviam prever os negociadores, não resolveu nem resolveria as disputas e os constantes conflitos dos interesses lusos e hispânicos. Mas a união das coroas a partir de 1580 fez submergir esses contenciosos que só voltaram a ressurgir a partir de 1640, quando a questão não era mais de descobrir, mas de explorar os territórios descobertos.
Em1750, o Tratado de Madri veio resolver as disputas relativas aos limites das terras portuguesas na América do Sul, com a aceitação do princípio do “uti possidetis, ita possideatis” (quem possui de fato deve possuir de direito), uma vez que os portugueses que vieram colonizar o Brasil não respeitaram a linha demarcada em Tordesilhas o que deu ao nosso país praticamente o mesmo mapa que temos até os dias de hoje.

Mas deixemos Madri, seu tratado e suas atrações para outra viagem com livros.