Desde a adolescência a Espanha, ou melhor, os reinos de
Castela, Aragão e Leão fazem parte desse imaginário histórico da construção do
Brasil e, consequentemente, do que e de quem somos.
Portugal, a pátria que nos pariu (ou descobriu, ou
achou, ou fundou) é ela própria, cria de Castela. O pedaço de terra achado
por Pedro Álvares Cabral teve
sua certidão de nascimento em um tratado firmado na desconhecida –
provavelmente assim permaneceria se não fora o tratado – cidade de Tordesilhas.
A falta de quaisquer outros atrativos – pelo menos que
eu tenha ouvido falar – fez com que nunca colocasse esta cidade como prioridade
nas vezes que fui à Espanha. E olha que estive até perto de lá nas visitas que
fiz a Ávila e Segóvia.
Por outro lado – ou melhor, para o outro lado para quem
sai de Madri – está a cidade que durante boa parte da história medieval da
península Ibérica teve posição política importante e foi capital de Reinos e
Taifas: Toledo.
Durante os séculos XIV e XV a corte de Leão e Castela
costumava se reunir em várias cidades – a ideia de capital administrativa como
temos hoje não fazia muito sentido já que o governo estava onde o rei estivesse
– mas certamente Toledo era uma das mais frequentadas.
O livro 1494, O Papa, os Reis e o Mercenário
de Stephen R. Brown não esclarece a razão, mas provavelmente, na época da
assinatura do tratado, a corte de Fernando e Isabel – os famosos reis católicos
– devia estar reunida em Valladolid, para que o evento ocorresse ali perto em
Tordesilhas.
Se o texto não esclarece este ponto da historia, ele
é rico em detalhes e informações sobre os estados ibéricos da era medieval e a formação
do que hoje conhecemos como Espanha.
O autor conta da rebeldia de Isabel que, contrariando
os partidários de seu irmão – Henrique IV, o Impotente - que articulavam o seu
casamento com o herdeiro do trono português, preferiu se casar às escondidas
com o herdeiro do trono de Aragão, seu primo Fernando, numa aliança que consolidaria
a reconquista da Península Ibérica pelo catolicismo e o fim de mais de 700 anos
de influência muçulmana naquela região.
O livro também revela o importante papel desempenhado
por Rodrigo Bórgia, bispo de Valência que, com o apoio de Fernando – político e
militar – veio a ser eleito papa em 1492, mesmo ano em que Colombo chegou às
Américas, também com o patrocínio dos reis católicos.Bórgia também tinha
participado das negociações junto ao Papa Sisto IV para autorizar o casamento entre os primos e, poucos anos depois, foi quem deu o
título de Reis Católicos para Fernando e Isabel.
Além do título, Rodrigo Bórgia, agora Papa Alexandre
VI, editou 3 bulas papais que viraram de ponta cabeça a expansão marítima
europeia e colocou ainda mais lenha na fogueira das disputas entre Portugal e
Castela.
A primeira delas Inter
Caetera, dava base legal para a reivindicação europeia sobre as terras
descobertas, garantia a justificação para a conquista da América indígena pelos
europeus e reconhecia todo poder e jurisdição aos reis de Castela e Leão sobre os
lugares descobertos “pelo nosso adorado filho Cristóvão Colombo”.Os reis católicos, entretanto, acharam pouco e
pressionaram Alexandre VI por mais.
Em resposta, a segunda bula papal, Eximia Devotiones, garantia direitos iguais à Espanha e Portugal
sobre as terras descobertas e estabelecia uma primeira linha divisória do mundo
descoberto e a descobrir, que ficaria a cem léguas dos Açores e de Cabo Verde.
O rei português, Dom João II, não acreditava nos rumos
que as decisões papais estavam tomando, mas ele ficou realmente furioso quando
a terceira bula papal reconheceu os direitos portugueses apenas sobre as terras
que estivessem sob sua posse até o natal de 1492. Não querendo confrontar diretamente o poder papal o rei resolveu abrir negociações diretas com Fernando e Isabel, mandando seus embaixadores para Tordesilhas para negociar o famoso tratado.
Ainda que não tenha sido o palco do acordo, Toledo é a
cidade mais representativa deste período da história espanhola. Tendo sido a
capital de uma das taifas mais ricas do Al-Andalus sua tomada pelos cristãos
em 1085, marcou o início da reconquista da península Ibérica e reforçou o
caráter religioso desta guerra.
A cidade murada, que fica a 70 quilometros de
Madri e com ligação de trens que partem da estação Atocha regularmente, é
passeio imperdível. Mais que a beleza dos trabalhos em aço da cidade, com suas
belas espadas e armaduras, a cidade é ponto de encontro das 3 culturas conviveram
na Ibéria durante tantos anos. Mesquitas, igrejas e sinagogas se misturam e se
sobrepõem de modo a evidenciar como a cidade foi plural e cosmopolita durante
seu auge.
A visita à catedral gótica, construída no século XII é
imperdível, os vários portões que compõem as muralhas da cidade, os recentes
achados das pesquisas arqueológicas sobre o período romano e visigótico da cidade,
assim como a Igreja de Santo Tomé, onde se pode apreciar o belo trabalho de El Greco - o
Enterro do Conde de Orgaz - mais que justificam um dia ou dois passados na
cidade.
Essa pintura, por sinal, faz parte de uma das minhas
mais antigas lembranças da Espanha: Quando adolescente, junto com meus pais e
meu irmão Carlos, eu fui pela primeira vez a Toledo e minha mãe nos fez pegar uma
fila que me pareceu interminável, sob o calor do verão da Mancha, para ver a
tal pintura.
Do auge da minha intolerância juvenil não pude deixar
de expressar minha opinião quando finalmente entramos na pequena sala onde está
a famosa obra:
É só isso? perguntei à minha mãe, sem esconder o sarcasmo por trás
das palavras. Acho que o elevado número de testemunhas impediu que minha mãe me
enforcasse ali mesmo! E com razão! Como sempre têm as mães.
Só o tempo me ensinou a apreciar as figuras esguias de
El Grego, suas mãos compridas e impressionantes e um belo jogo de luzes que faz
dele um dos principais representantes da pintura medieval da Europa.
Depois de Toledo os cristãos avançaram cada vez mais
para o sul da península e foram os reis católicos que concluíram esse processo
depois de séculos.
Também foi sob o patrocínio de Fernando e Isabel que a
Espanha embarcou na aventura ultramarina que se converteu na colonização das Américas
e do globo, só que agora com a concorrência de franceses, holandeses e ingleses
que também avocaram para si o direito do mar livre, como nos conta Stephen
Brown.
Pouco mais de 30 anos depois do Tratado de Tordesilhas
portugueses e espanhóis voltaram a se reunir para discutir uma nova linha
divisória do globo e de seu poderio, no debate do que veio a ser chamado de o
antimeridiano, ou seja, o lugar por onde passaria a linha do tratado no outro
lado do mundo. Desta vez a cidade escolhida para abrigar as negociações foi Zaragoza.
Situada no meio do caminho entre Madri (Leão e Castela)
e Barcelona (Aragão) e às margens do importante Rio Ebro – de onde vem o nome
Ibéria – a cidade alcançou seu apogeu durante o Império Romano, como importante
entreposto comercial quando era chamada Caesar Augusta (que virou Sarakusta
para os muçulmanos). Ela tem, como ponto alto para os turistas e visitantes, o museu romano, que na verdade são vários museus: o porto, o belíssimo anfiteatro, os restos da muralha, as termas. Partes de um mesmo museu espalhado por todo o centro, permitindo ao viajante conhecer, simultaneamente, a cidade de hoje e sua versão da antiguidade.
A Basilica del Pilar, cuja construção teve início em 1681 (há registros de templos na localidade desde tempos imemoriais) e teve últimas intervenções no século XVIII, impressiona pelo seu porte monumental, sua beleza barroca e os afrescos pintados por Goya.
O Tratado de Zaragoza, como então já deviam prever os
negociadores, não resolveu nem resolveria as disputas e os constantes conflitos
dos interesses lusos e hispânicos. Mas a união das coroas a partir de 1580 fez
submergir esses contenciosos que só voltaram a ressurgir a partir de 1640,
quando a questão não era mais de descobrir, mas de explorar os territórios
descobertos.
Em1750, o Tratado de Madri veio resolver as disputas
relativas aos limites das terras portuguesas na América do Sul, com a aceitação
do princípio do “uti possidetis, ita
possideatis” (quem possui de fato deve possuir de direito), uma vez que os
portugueses que vieram colonizar o Brasil não respeitaram a linha demarcada em
Tordesilhas o que deu ao nosso país praticamente o mesmo mapa que temos até os
dias de hoje.
Mas deixemos Madri, seu tratado e suas atrações para
outra viagem com livros.
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