domingo, 14 de julho de 2013

Toledo, Zaragoza, Tordesilhas e a Espanha dos Tratados.


Desde a adolescência a Espanha, ou melhor, os reinos de Castela, Aragão e Leão fazem parte desse imaginário histórico da construção do Brasil e, consequentemente, do que e de quem somos.
Portugal, a pátria que nos pariu (ou descobriu, ou achou, ou fundou) é ela própria, cria de Castela. O pedaço de terra achado por Pedro Álvares Cabral teve sua certidão de nascimento em um tratado firmado na desconhecida – provavelmente assim permaneceria se não fora o tratado – cidade de Tordesilhas.

A falta de quaisquer outros atrativos – pelo menos que eu tenha ouvido falar – fez com que nunca colocasse esta cidade como prioridade nas vezes que fui à Espanha. E olha que estive até perto de lá nas visitas que fiz a Ávila e Segóvia.
Por outro lado – ou melhor, para o outro lado para quem sai de Madri – está a cidade que durante boa parte da história medieval da península Ibérica teve posição política importante e foi capital de Reinos e Taifas: Toledo.

Durante os séculos XIV e XV a corte de Leão e Castela costumava se reunir em várias cidades – a ideia de capital administrativa como temos hoje não fazia muito sentido já que o governo estava onde o rei estivesse – mas certamente Toledo era uma das mais frequentadas.
O livro 1494, O Papa, os Reis e o Mercenário de Stephen R. Brown não esclarece a razão, mas provavelmente, na época da assinatura do tratado, a corte de Fernando e Isabel – os famosos reis católicos – devia estar reunida em Valladolid, para que o evento ocorresse ali perto em Tordesilhas.

Se o texto não esclarece este ponto da historia, ele é rico em detalhes e informações sobre os estados ibéricos da era medieval e a formação do que hoje conhecemos como Espanha.
O autor conta da rebeldia de Isabel que, contrariando os partidários de seu irmão – Henrique IV, o Impotente - que articulavam o seu casamento com o herdeiro do trono português, preferiu se casar às escondidas com o herdeiro do trono de Aragão, seu primo Fernando, numa aliança que consolidaria a reconquista da Península Ibérica pelo catolicismo e o fim de mais de 700 anos de influência muçulmana naquela região.

O livro também revela o importante papel desempenhado por Rodrigo Bórgia, bispo de Valência que, com o apoio de Fernando – político e militar – veio a ser eleito papa em 1492, mesmo ano em que Colombo chegou às Américas, também com o patrocínio dos reis católicos.Bórgia também tinha participado das negociações junto ao Papa Sisto IV para autorizar o casamento entre os primos e, poucos anos depois, foi quem deu o título de Reis Católicos para Fernando e Isabel.
Além do título, Rodrigo Bórgia, agora Papa Alexandre VI, editou 3 bulas papais que viraram de ponta cabeça a expansão marítima europeia e colocou ainda mais lenha na fogueira das disputas entre Portugal e Castela.

A primeira delas Inter Caetera, dava base legal para a reivindicação europeia sobre as terras descobertas, garantia a justificação para a conquista da América indígena pelos europeus e reconhecia todo poder e jurisdição aos reis de Castela e Leão sobre os lugares descobertos “pelo nosso adorado filho Cristóvão Colombo”.Os reis católicos, entretanto, acharam pouco e pressionaram Alexandre VI por mais.

Em resposta, a segunda bula papal, Eximia Devotiones, garantia direitos iguais à Espanha e Portugal sobre as terras descobertas e estabelecia uma primeira linha divisória do mundo descoberto e a descobrir, que ficaria a cem léguas dos Açores e de Cabo Verde.
O rei português, Dom João II, não acreditava nos rumos que as decisões papais estavam tomando, mas ele ficou realmente furioso quando a terceira bula papal reconheceu os direitos portugueses apenas sobre as terras que estivessem sob sua posse até o natal de 1492.

Não querendo confrontar diretamente o poder papal o rei resolveu abrir negociações diretas com Fernando e Isabel, mandando seus embaixadores para Tordesilhas para negociar o famoso tratado.

Ainda que não tenha sido o palco do acordo, Toledo é a cidade mais representativa deste período da história espanhola. Tendo sido a capital de uma das taifas mais ricas do Al-Andalus sua tomada pelos cristãos em 1085, marcou o início da reconquista da península Ibérica e reforçou o caráter religioso desta guerra.
A cidade murada, que fica a 70 quilometros de Madri e com ligação de trens que partem da estação Atocha regularmente, é passeio imperdível. Mais que a beleza dos trabalhos em aço da cidade, com suas belas espadas e armaduras, a cidade é ponto de encontro das 3 culturas conviveram na Ibéria durante tantos anos. Mesquitas, igrejas e sinagogas se misturam e se sobrepõem de modo a evidenciar como a cidade foi plural e cosmopolita durante seu auge.

A visita à catedral gótica, construída no século XII é imperdível, os vários portões que compõem as muralhas da cidade, os recentes achados das pesquisas arqueológicas sobre o período romano e visigótico da cidade, assim como a Igreja de Santo Tomé, onde se pode apreciar o belo trabalho de El Greco - o Enterro do Conde de Orgaz - mais que justificam um dia ou dois passados na cidade.
Essa pintura, por sinal, faz parte de uma das minhas mais antigas lembranças da Espanha: Quando adolescente, junto com meus pais e meu irmão Carlos, eu fui pela primeira vez a Toledo e minha mãe nos fez pegar uma fila que me pareceu interminável, sob o calor do verão da Mancha, para ver a tal pintura.

Do auge da minha intolerância juvenil não pude deixar de expressar minha opinião quando finalmente entramos na pequena sala onde está a famosa obra:
É só isso? perguntei à minha mãe, sem esconder o sarcasmo por trás das palavras. Acho que o elevado número de testemunhas impediu que minha mãe me enforcasse ali mesmo! E com razão! Como sempre têm as mães.
Só o tempo me ensinou a apreciar as figuras esguias de El Grego, suas mãos compridas e impressionantes e um belo jogo de luzes que faz dele um dos principais representantes da pintura medieval da Europa.

Depois de Toledo os cristãos avançaram cada vez mais para o sul da península e foram os reis católicos que concluíram esse processo depois de séculos.
Também foi sob o patrocínio de Fernando e Isabel que a Espanha embarcou na aventura ultramarina que se converteu na colonização das Américas e do globo, só que agora com a concorrência de franceses, holandeses e ingleses que também avocaram para si o direito do mar livre, como nos conta Stephen Brown.

Pouco mais de 30 anos depois do Tratado de Tordesilhas portugueses e espanhóis voltaram a se reunir para discutir uma nova linha divisória do globo e de seu poderio, no debate do que veio a ser chamado de o antimeridiano, ou seja, o lugar por onde passaria a linha do tratado no outro lado do mundo. Desta vez a cidade escolhida para abrigar as negociações foi Zaragoza.
Situada no meio do caminho entre Madri (Leão e Castela) e Barcelona (Aragão) e às margens do importante Rio Ebro – de onde vem o nome Ibéria – a cidade alcançou seu apogeu durante o Império Romano, como importante entreposto comercial quando era chamada Caesar Augusta (que virou Sarakusta para os muçulmanos).

Ela tem, como ponto alto para os turistas e visitantes, o museu romano, que na verdade são vários museus: o porto, o belíssimo anfiteatro, os restos da muralha, as termas. Partes de um mesmo museu espalhado por todo o centro, permitindo ao viajante conhecer, simultaneamente, a cidade de hoje e sua versão da antiguidade.

A Basilica del Pilar, cuja construção teve início em 1681 (há registros de templos na localidade desde tempos imemoriais) e teve últimas intervenções no século XVIII, impressiona pelo seu porte monumental, sua beleza barroca e os afrescos pintados por Goya.

O Tratado de Zaragoza, como então já deviam prever os negociadores, não resolveu nem resolveria as disputas e os constantes conflitos dos interesses lusos e hispânicos. Mas a união das coroas a partir de 1580 fez submergir esses contenciosos que só voltaram a ressurgir a partir de 1640, quando a questão não era mais de descobrir, mas de explorar os territórios descobertos.
Em1750, o Tratado de Madri veio resolver as disputas relativas aos limites das terras portuguesas na América do Sul, com a aceitação do princípio do “uti possidetis, ita possideatis” (quem possui de fato deve possuir de direito), uma vez que os portugueses que vieram colonizar o Brasil não respeitaram a linha demarcada em Tordesilhas o que deu ao nosso país praticamente o mesmo mapa que temos até os dias de hoje.

Mas deixemos Madri, seu tratado e suas atrações para outra viagem com livros.

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