Nunca me dei ao trabalho
de especular de onde vem essa minha necessidade de viajar ou, parafraseando
Renato Russo, sobre o porquê “dessa saudade que eu sinto, de tudo que eu ainda
não vi”. Mas acredito que acabei de descobrir a resposta e, para variar,
encontrei-a em um livro.
Descobri ao ler Paulo
de Tarso, biografia de São Paulo escrita por Josef Holzner, um padre
alemão falecido em 1947, em que o autor conta as inúmeras viagens do Santo de onde minha
avó Dolores tirou o nome de meu pai – Paulo de Tarso – e de cuja tradição me
tornei herdeiro, assim como o meu filho mais velho, também Paulo, só que
Ernesto. Acho que é dele – do santo – que herdei essa minha vontade de
conhecer lugares e pessoas.
O livro é um tijolaço de
mais de 700 páginas que, diferentemente daquele em que
o autor tenta contar a vida de Jesus a partir de elementos históricos, deixando
para lá a questão da fé e da religião, o de Holzner parte de uma proposta
completamente diferente. Sua principal referência é a Bíblia, especialmente os
Atos dos Apóstolos e as várias epístolas escritas por São Paulo aos cristãos
das muitas cidades onde ele ajudou a fundar igrejas.
Com base nesses
documentos e em outras pesquisas, o autor vai contar a epopeia do
homem que transformou o cristianismo de uma seita judaica em uma religião
católica, a partir de uma abordagem histórico-psicológica, por assim dizer. Ou seja, em
nenhum momento o autor questiona a inspiração divina do apostolado de Paulo, de seus companheiros ou quaisquer afirmações ou descrições contidas no Livro.
Pelo contrário, toda vez que a narrativa bíblica ou a abordagem psicológica
apresentam uma lacuna para a argumentação do autor, é na fé inquebrantável do
santo, na intervenção divina ou nas inspirações do Espírito Santo que ele vai
buscar a resposta para sustentar sua teoria.
Mas quem foi Saulo ou
Paulo e porque tanto viajou?
Minha primeira descoberta
foi com relação ao nome do santo. Sempre achei que ele se chamava Saulo (de
origem grega) e quanto se converteu ao cristianismo, na estrada para Damasco,
resolveu adotar o nome romanizado de Paulo. Mas, segundo o autor não era bem
assim: vivendo em um mundo onde as culturas se mesclavam, o apóstolo adotava ambos
os nomes uma vez que, sendo judeu, cidadão romano e filho da cultura helênica
podia usar essa estratégia. Assim, dependendo da circunstância ou do local,
podia ser Paulo ou Saulo.
E porque Saulo ou Paulo
foi tão feroz perseguidor de cristo e dos cristãos?
A frase que sempre vem à
mente quando penso no santo deve ter saído de algum filme que assisti em eras
passadas: “Saulo, Saulo, porque me persegues?” Assim Jesus teria falado ao
homem na entrada da cidade de Damasco, derrubando-o do cavalo e condenando-o a
uma cegueira temporária, até que aceitasse Jesus como Senhor e Único Salvador.
O autor traz uma
explicação psicológica para a questão. Na sua visão, Paulo – um judeu com erudição religiosa – sofria com a prisão da Lei e a sua incapacidade de
nela se manter firme. Naquela época, o judaísmo vivia um período em que os
rituais e as exigências decorrentes da obediência ao Templo e ao estrito
cumprimento da Lei oprimiam de tal modo a vida das pessoas que elas passavam a
maior parte do tempo se sentindo pecadoras, condenadas ao inferno.
Com Paulo não seria
diferente e ele teria sofrido com este aprisionamento e com o sentimento de
impotência e incapacidade. Para diminuir seu sentimento de fracasso e sua sensação
de culpa, o futuro santo dirigiu todo o seu rigor na repressão daqueles
que contestavam a Lei, incluindo-se aí os seguidores do homem crucificado de
Jerusalém.
O autor afirma que
primeiro contato de Paulo com os ensinamentos (heréticos) de Jesus Cristo teria
sido na sua primeira visita a Jerusalém quando assistiu a discussão entre
Estevão e os membros do Templo, que acabou com a morte de Estevão apedrejado
nas portas do lugar sagrado.
Tendo notícias que o
cristianismo estaria se espalhando pelas várias comunidades judaicas no norte
de Jerusalém, conhecendo a disposição de Paulo para viajar e sua forte adesão
aos princípios da Lei, os membros do Sinédrio resolvem designá-lo para ir a
essas comunidades e por fim à heresia. É numa dessas missões que acontece o
encontro com Jesus às portas de Damasco e a sua conversão à fé cristã, que
abrirá para ele um mundo de viagens e aventuras.
No primeiro momento, sem
saber como proceder e, provavelmente, temendo regressar a Jerusalém como um
converso ao cristianismo, Paulo resolve se refugiar na capital do reino dos
Nabateus, Petra, um entreposto comercial encravado do meio de um desfiladeiro
que, por conta do enorme fluxo de estrangeiros era muito tolerante, do ponto de
vista religioso.
Depois de alguns anos de
reflexão e perplexidade Paulo resolve que sua missão deve ser levar a “boa
nova” do cristianismo para todos, não apenas para os judeus que moravam fora de
Israel, mas para todos aqueles que estivessem dispostos a receber os
ensinamentos de Cristo e aceitar a sua palavra.
Ao se apresentar aos
“cardeais” do cristianismo em Jerusalém e convence-los de sua adesão ao Cristo,
Paulo é designado para acompanhar Barnabé nas suas peregrinações pela Ásia
Menor. Começa assim a primeira de suas quatro viagens nessa missão apostólica
que o levará de Jerusalém a Roma, passando por Antióquia, Éfeso, Chipre,
Tessalônica, Corinto, Cesareia e várias outras terras que acabaram se tornando
conhecidas pelas muitas cartas que ele escreveu aos membros das igrejas que foi
deixando em cada uma delas.
O texto de Holzner
descreve cada uma dessas epopeias divinas, enfatizando
a santidade de Paulo, sua obediência aos mandamentos de cristo e sua paixão
pela missão que o Senhor lhe havia designado. Seu empenho em mostrar a unidade
e coerência da missão de Paulo, faz com que mesmo as divergências e disputas
com Tiago, Pedro e outros membros mais antigos da igreja que olhavam com
desconfiança a adesão de não judeus ao cristianismo e exigiam o cumprimento da
Lei, fossem tratadas como pequenas querelas sem maior importância.
O autor oferece ao leitor
ótimas descrições das paisagens e das características dos povos das muitas
regiões por onde Paulo viajou. Na maioria das vezes, ia a pé de uma
cidade para outra, permanecendo em cada uma delas por temporada, pregando e trabalhando como tecelão – Paulo sempre tirou seu sustento da sua profissão –
até que fosse denunciado, perseguido e expulso. Mais de uma vez sua missão de
evangelizador colocou sua vida em risco e, não fosse a ajuda de amigos ou da
providência, certamente não teria alcançado a idade madura quando foi
finalmente condenado a morte em Roma.
Tantas foram as viagens
de Paulo, tantas as cidades visitadas, que é difícil escolher uma delas para
acompanha-lo. Tempos depois da leitura do livro em questão estive em Petra, na Jordânia, e pude apreciar as magníficas construções encravadas nas pedras vermellhas daquela região desértica, que se outrora foi centro comercial de todo um reino, hoje vive da exploração de seu principal ativo turístico, redescoberto pelo mundo depois das aventuras de Indiana Jones.
Mas para homenagear sua terra natal, pode-se começar seguindo
alguns de seus passos pela Ásia Menor. Nos mapas de hoje esta
região está quase que totalmente compreendida pelo território da Turquia, então é para lá que vamos. Só que, ao contrário de Paulo,
que partiu de Jerusalém para a região, fazendo uma rota da Ásia para a
Europa, nossa viagem segue o caminho inverso.
O ponto de partida é Istambul, cruzando
toda a península de Galipoli, para tomar o ferry-boat e atravessar o estreito de
Dardanelos, entre as cidades de Eceabat e Çanakkale. É uma travessia de menos de
30 minutos, pois no Dardanelos a distância entre Ásia e Europa é de 1,2
quilômetros e, por isto mesmo, sempre foi um ponto estratégico nas guerras da
região. Em 480 a. C., por exemplo, Xerxes fez o exército persa atravessar o
Helesponto (como o estreito era chamado) fazendo uma ponte com seus barcos para invadir a Macedônia.
A poucos quilômetros de
Çanakkale estão as ruínas da famosíssima Tróia, palco da guerra memorável que
envolveu homens, heróis e deuses, sem falar no famoso estratagema do Cavalo,
que os gregos adotaram para conseguir burlar a fortaleza troiana e invadir a
cidade.
Se tais ruínas fossem nos
Estados Unidos provavelmente teríamos uma “Disney helênica”
explorando em todas as dimensões essa história mitológica, mas na Turquia o
museu a céu aberto com as ruínas das muitas cidades
sobrepostas é tímido, para dizer o mínimo. Para completar, no dia que visitamos
as ruínas, chovia e a réplica do tal cavalo estava coberta por uma lona preta para
restauro. Mas não dava para passar ali tão perto e não visita-la .
Concluída esta etapa da
viagem – Paulo passou ali perto na sua segunda viagem, a
caminho de Tessalonica – seguimos em direção a Selçuk, ali a decepção com
Tróia foi superada pela precariedade do hotel que nos hospedamos, mas foi
compensada, com sobras, pela maravilha que são as ruínas de Éfeso.
Mesmo antes de visitar a
ruínas, duas atrações ligadas à história do cristianismo merecem ser visitadas.
A primeira está na própria cidade de Selçuk, nas ruínas da antiga basílica
cristã destruída durante o período das “reconquistas muçulmanas”: o
túmulo de São João Evangelista. Segundo alguns pesquisadores ele teria sido enviado
por Pedro para Éfeso para propagar a mensagem de Cristo consolidando a igreja
que Paulo tinha iniciado. Outros estudiosos afirmam que além da missão evangelizadora,
também coube a ele a tarefa de tirar Maria, a mãe de Jesus, de Jerusalém e
protege-la até o fim de seus dias.
Por conta desta história
vem a segunda atração, visita obrigatória para os cristãos: a casa em que,
supostamente, Maria viveu seus últimos dias. O local é hoje uma área voltada
para a peregrinação e contemplação religiosa e, diariamente, centenas de
pessoas de todo o mundo vem visitar e orar pedindo a intermediação da santa. A
capelinha construída sobre as fundações de onde teria sido a casa é simples,
mas acolhedora, e o local convida mesmo à introspecção. Vale uma visita, com
certeza.
Na volta desta visita,
era hora de conhecer o espetáculo que é Éfeso. A cidade está praticamente toda
lá, para ser apreciada, estudada e admirada. Os templos, a ágora, as casas onde
pessoas moravam, os banhos e as latrinas públicas, suas ruas e avenidas,
a impressionante biblioteca de Celso, o anfiteatro com capacidade para 25 mil
pessoas, o porto e a avenida que dá acesso a ele, tudo, tudo permite ao
visitante apreciar como seria a vida dos homens e mulheres daquela região no
período que antecedeu o alvorecer do cristianismo.
Éfeso foi um dos principais
centros do helenismo. Ali o famoso Pitágoras – aquele do teorema – fundou e
manteve uma escola e Tales de Mileto, cidade próxima, também frequentou a
cidade para se tornar conhecido como o pai da filosofia ocidental. No período
romano a cidade se transformou no principal porto do Mar Egeu, fazendo
florescer o comércio e intercâmbio na região, era rica, culta e próspera.
Depois da passagem de
Paulo e João pela cidade, Éfeso se transformou numa das cidades do Império
Romano onde o cristianismo mais se difundiu. Por conta de sua importância para
a nascente religião, os dois primeiros Concílios da Igreja Católica (431 e
449 d.C.) foram ali realizados. No primeiro deles foi confirmado o dogma da
maternidade da Virgem Maria e a dupla natureza de Jesus Cristo, como Deus
e como homem.
De Selçuk seguimos rumo a
Pamukkale – que em turco quer dizer castelo de algodão – uma linda montanha branca, com piscinas naturais de águas de um azul translúcido encravadas nas cascatas
de formação calcária que resplandecem à luz do sol.
No caminho para Pamukkale,
numa discreta saída à direita na rodovia, estão as ruínas de Afrodisias, outro dos interessantes museus
abertos existentes na Turquia, este bem melhor organizado que o de Troia, diga-se de passagem. A cidade ocupava uma ampla área e muitos de seus
equipamentos, como o templo de Afrodite, os banhos públicos, o anfiteatro e o estádio, evidenciam
que os jogos e as festas que ali ocorriam eram capazes de atrair multidões de cidades e regiões próximas.
Não pude deixar de ficar
imaginando – nesse período de grandes eventos no Brasil – como deveria ser
desafiador preparar uma cidade pequena para receber 10 a 15 mil pessoas para um evento
com todas as exigências de logística, serviços públicos, alimentação, segurança
e etc, isto há mais de 2000 anos!
Chegando a Pamukkale e
já alojados em um hotel decente, resolvemos subir a montanha a pé para descobrir
que no topo estão as ruínas de Hierápolis, cidade da Frígia,
fundada no Século II a.C, que tinha nas suas fontes de águas termais uma de suas principais atrações. Ali, na
pérgola das milenares piscinas, onde gregos, romanos e bizantinos vinham para se
tratar ou por lazer, aproveitamos para
descansar da subida pelas encostas brancas da montanha tomando uma deliciosa
taça vinho produzido ali na região de Denizli.
Além das enormes piscinas
do balneário também vale visitar as ruínas do teatro romano que observa desde o
alto, toda a cidade e o vale abaixo. Aqui também estão ruínas de ruas, moradias, templos e
estruturas de defesa que dão ao visitante uma ideia de vida de então, bonita, mas nada
que se comparasse com Éfeso.
Quando o sol começava a
se por decidimos voltar, descendo a montanha e, mais uma vez,
aproveitar a deliciosa sensação de molhar os pés em suas águas mornas. Se
Pamukkale é bonita durante o dia, no fim da tarde então... A luz do entardecer na montanha de algodão produz um efeito multicolorido, capaz de tirar suspiros
do menos sensível dos visitantes.
Dali do alto,
contemplando a beleza da montanha multicolorida e seu contraste com o verde da planície aos nossos pés, é fácil entender
porque alguns, como Paulo de Tarso, dedicam toda ela a viajar e propagar a palavra de
Deus.