Em geral os livros e viagens que faço relação são
frutos de agradáveis coincidências. De repente uma paisagem, um lugar ou uma situação
me remetem a um livro ou, ao contrário, é a leitura que me faz lembrar uma
cidade ou uma viagem. Assim nascem os textos.
Quando decidi conhecer a região da Andaluzia, na
Espanha, minha “prima” Fátima me sugeriu ler A Mão de Fátima, de
Idelfonso Falcones, certa que me daria uma visão geral da região e suas belezas
e muito me ajudaria a melhor apreciar a viagem.
Realmente, a novela – que se passa na última
metade do século XVI – é repleta de informações históricas e turísticas sobre a
região. Mais importante: ela é de grande ajuda para compreender as
particularidades de uma região que por mais de 800 anos esteve sobre o domínio
dos mulçumanos e que, a partir século XIV, começou a ser reconquistada pelos
cristãos.
A estória de A Mão de Fátima se passa nos últimos
momentos desse período de conquista e tem como personagem central um jovem
mulçumano de olhos azuis, filho de uma muçulmana que foi violentada por um
padre católico, daí a cor dos olhos. Hernando, esse é seu nome, é educado na fé
cristã pelos padres da cidade, educado no islamismo pelo seu mentor, Amid, e
discriminado pela população da vila de Juviles, que o trata por Nazareno.
A mãe, depois que se descobriu grávida, foi
obrigada a casar com um homem rude que, a troco de uma mula, aceitou conviver
com aquela situação. Além de um casamento complicado, Aisha, a mãe, tinha que suportar as agressões e humilhações que o marido, chamado
Brahim, submetia a ela e seu filho "impuro".
A vida de Hernando, seus familiares e dos
moradores de Juviles e das Alpujarras é transformada quando os mulçumanos, não
suportando a opressão cristã, se revoltam contra o Rei Felipe II e elegem Aben
Humeya, nobre mourisco cujo nome espanhol era Hernando de Córdoba e Válor, Rei
de Granada e Córdoba.
Durante o período que vai da coroação de Aben
Humeya até o seu assassinato por seus subordinados, a maior parte das
personagens importantes da novela vai aparecendo, incluindo-se aí Fátima, cuja
mão será pivô da ferrenha disputa entre Hernando e seu padrasto.
Se o livro permite ao leitor uma visão muito
interessante da Andaluzia, especialmente das regiões montanhosas do entorno de
Granada e Córdoba, a história propriamente dita abusa da boa vontade do leitor.
Me senti assistindo uma novela da Globo.
Explico melhor.
Qual a probabilidade de uma pessoa que nasce pobre
em um lugar afastado, por pura sorte, ficar rica? Alguma. Qual a probabilidade
desta mesma pessoa ficar pobre novamente e depois, também por puro acaso, ficar
rica novamente e mudar completamente a sua condição? Agora, qual a
probabilidade de isso acontecer com duas pessoas próximas ao longo de alguns
poucos anos?
O problema da novela de Falcones é que para manter
viva a disputa de Hernando e Brahin pelo amor de Fátima ele recorre a uma sucessão
de altos e baixos, baseada em acasos e coincidências que faz com que a sorte
mude de um lado para o outro. Assim, o improvável se torna lugar
comum, ao mesmo tempo, a surpresa se torna previsível. Mais ou menos como as
novelas da Globo: previsíveis e inverossímeis.
Mas reconheço que tem muita gente que gosta das
novelas globais! Também a novela de Falcones agrada a muitos.
Como muitas das cenas da novela se passam nas
regiões montanhosas da Andaluzia e como a sucessão de subidas e descidas da
improvável trajetória de vida de Hernando, Fátima e Brahim me remete aos picos
e vales das suas montanhas, em lugar de uma viagem a Granada, Córdoba ou
Sevilha, que seria provável, preferi contar nossa aventura por essas áreas
menos exploradas pelos turistas.
Assim, deixemos de lado a bela arquitetura em
estilo mudéjar que ornamenta os muitos alcazares da região, a impressionante
mesquita-catedral de Córdoba ou os produtos do secular embate entre cristãos e
mouros e partamos para as terras montanhosas do Al-Andaluz.
Seguindo os passos de Hernando, Fátima e Brahim
comecemos pelas Alpujarras, a região montanhosa que fica ao sul de Granada e
tem como ponto alto – em sentido real e metafórico – a belíssima Serra Nevada.
É no ambiente rústico e, em certa medida inóspito
das Alpujarras, que a opressão cristã e as dificuldades de sobrevivência dos
muçulmanos encontram condições para a rebelião de Hernando de Córdoba y Válor.
Válor e Juviles, terras de nascimento dos dois Hernandos,
estão situadas na região, assim como Berja e outras muitas localidades por onde
as personagens transitam durante toda a primeira metade da novela.
Quando se chega a Granada já se vê, ao longe, a
beleza imponente da Serra Nevada, mas é no caminho para o litoral, para Almeria,
que se tem a oportunidade de ver mais de perto as Alpujarras.
As ótimas rodovias que hoje servem a região tiram
do viajante a oportunidade de passar dentro das pequenas cidades que foram
palco de sangrentos embates no longínquo século XVI, mas não conseguem apagar
as belas e impressionantes paisagens da região.
Quando voltávamos de Almeria para Granada ainda
tentamos arriscar passar pelo Puerto de La Ragua, uma passagem natural a mais
de 2000 metros de altitude que desde os tempos mais remotos ligava essas duas
províncias espanholas e que na novela é palco de importante acontecimento.
Entretanto, o clima não estava muito convidativo e
temendo enfrentar estradas com neve sem pneus apropriados, acabamos desistindo.
Enquanto as Alpujarras passam ao viajante uma
ideia de terra pouco explorada, a região de montanhas que separa Granada de
Córdoba – por onde, segundo a novela, milhares de muçulmanos aprisionados
quando sufocaram a rebelião foram obrigados a marchar e onde Fátima vê seu
primeiro filho morrer em seus braços – é o exato oposto.
Não tendo picos ou vales tão acentuados como nas
Alpujarras, as sierras Subbéticas, ao sul de Córdoba, estão totalmente ocupadas
por atividades produtivas, especialmente pelos olivais. São hectares e hectares
de oliveiras, eventualmente intercalados por pastos ou outras culturas.
Ao retornarmos de Córdoba para Granada optamos por
um caminho alternativo que nos levou a esta região serrana, passando pela um
tanto acanhada cidade de Priego de Córdoba. Aqui, a vegetação é de um verde
mais intenso e profundo. Se fosse para comparar com nossa geografia: enquanto
as Alpujarras me lembram das serras aqui do Ceará; as Subbéticas me lembraram
da região serrana do Rio de Janeiro. Diferentes, mas igualmente belas.
Depois de muitas idas e vindas entre Granada e
Córdoba, não as nossas, mas as das personagens da novela, Hernando e sua família são levados para Sevilha, agora como parte do expurgo
dos mouros decidido pelo rei de Espanha ao descobrir que eles haviam conspirado
com a Rainha Elizabeth I da Inglaterra contra o trono espanhol. Assim, nós também seguimos para Sevilha.
Ao sul de Sevilha está a Sierra de Grazalema e a região
dos “pueblos blancos” ou povoados brancos, que são assim denominados pela
impressão que causa ao viajante as várias cidadezinhas com suas casinhas
brancas encarapitadas nos altos, quase sempre em volta de um castelo ou algum
outro tipo de fortificação que em épocas passadas lhes garantiam proteção.
Ronda Vieja, a “capital” dos pueblos blancos é uma
cidade não muito grande, situada no topo de um afloramento rochoso, com
estreitas ruas de calçamento e uma grande tradição das touradas. A Plaza de
Toros foi inaugurada ainda no século XVIII e é a cidade de nascimento de Pedro
Romero, conhecido como pai das touradas modernas.
Por estar numa posição elevada, a cidade oferece um sem número de vistas de tirar o fôlego, seja da impressionante ponte
que liga a parte antiga da cidade à parte mais nova, seja dos muitos miradores
existentes, como os da Plaza del Campillo. Mas, o que realmente me chamou a atenção
foi a arquitetura da igreja de Santa Maria La Mayor. Além de ter sido construída
sobre uma antiga mesquita, entre outras coisas convertendo o minarete em torre
do campanário, o balcão construído na lateral da igreja que dá para a pequena
praça do Ayuntamento faz com que o igreja pareça a fachada de um palacete.
Diz a lenda que em tempos pretéritos, os nobres,
clérigos e convidados ilustres que vinham para a cidade acompanhar os festejos
religiosos e as corridas de touros ficavam acomodados, de camarote, nos balcões da igreja.
Tanto assim que, quando a Plaza de Toros foi inaugurada em 1785, o bispado de
Ronda teve direito a um “camarote” nas suas arquibancadas.
De Ronda até Marbella ou qualquer outra cidade da
belíssima Costa del Sol toma-se uma estrada serrana cheia de curvas e paisagens
exuberantes. Nem tão áridas quanto as Alpujarras nem tão
frondosas quanto a vegetação das Subbeticas, a cada curva a paisagem da Sierra de Grazalema
prepara o espírito para o maravilhoso contraste das suas formações rochosas com o
azul-dourado do Mar Mediterrâneo e anuncia o fim da nossa viagem.
Depois de tantas curvas, tanto sobe-e-desce,
tantas agradáveis surpresas improváveis desta Andaluzia montanhosa, nada como
sentar-se em um bom restaurante em Puerto Banús e tomar um delicioso
Tempranillo admirando a beleza do mar e a opulenta vida dos ricos e famosos da
Europa.
Paulo, obrigada por compartilhar conosco estas viagens maravilhosas. Com você ficamos conhecendo o mundo, não apenas com os olhos físicos, mas com alma; com a história do lugar tudo passa a ter um significado mais profundo que um mero passeio turístico.
ResponderExcluirEstive aí em 2015, como os ao Marrocos passei poucos dias . Estarei na Andaluzia novamente em fevereiro próximo com mais tempo . Essa região da Espanha e espetacular...
ResponderExcluir