A inexorável marcha da civilização é uma das
coisas que mais chama a minha atenção nas muitas viagens que fiz na América
Latina. Note-se que não há um juízo de
valor quanto se esta civilização é melhor que aquela ou se esse padrão de desenvolvimento
é melhor. Nada disto!
Há apenas a constatação de um processo
aparentemente inevitável de culturas se sobrepondo umas às outras – em geral de
forma não pacífica – por todos os lugares por onde andei, especialmente pela
América espanhola.
De norte a sul, do México à Patagônia, salta
aos olhos dos viajantes esta constante superposição de culturas, impérios e
civilizações, seja pela dominação econômica, pela cooptação política, pela
repressão cultural, pela supremacia bélica ou pelo total holocausto de populações
há anos instaladas em um determinado território.
No livro Camiñarás con el Sol, Alfonso Mateo
Sagasta nos apresenta uma das facetas deste processo de histórico de culturas e
civilizações se transformando ao contar, de forma romanceada, a história de
Gonzalo Guerrero, um marinheiro espanhol cuja caravela naufragou nas imediações
da Jamaica e seus sobreviventes acabaram sendo capturados e escravizados por
guerreiros no Yucatán.
O incidente ocorre no ano de 1516, quando a
civilização Maia que dominava aquela região do globo já entrava em decadência e
quando a aventura de dominação espanhola no que hoje conhecemos como México era
um projeto que levaria alguns anos para se concretizar. Durante o período que permaneceu no cativeiro
Guerrero foi aos poucos se ajustando ao modo de vida dos seus captores e passou
a compreender e auxiliar a tribo que o escravizava a se fortalecer num ambiente
em que as diversas tribos e grupos de guerreiros viviam em permanente estado de
confronto.
Logo o protagonista de Mateo Sagasta estava
orientando os ameríndios nas táticas militares mais modernas que se adotavam
nos exércitos europeus e, por conta dos sucessos obtidos nas muitas disputas e
escaramuças que enfrentou, se convertendo em um dos principais líderes
militares daqueles índios, garantindo supremacia entre as tribos do seu entorno
e transformando seu pequeno exército em um dos principais obstáculos aos
avanços dos exércitos de Hernán Cortez nas selvas de Yucatán.
O livro não tem tom de denúncia ou de
revisionismo histórico, mas assume um viés pro-ameríndios já que a experiência
é narrada – majoritariamente – a partir da perspectiva de um europeu que acaba
por assumir e adotar para si a cultura dos locais, a tal ponto que quando teve
a oportunidade de juntar-se ao exército espanhol, chance que seu colega de
naufrágio e de cativeiro Jerónimo Aguilar logo aceitou, Guerrero preferiu ficar
com seus guerreiros maias.
Tão destacada foi sua atuação nas guerras do
Yucatán, especialmente aquela em que cruzou o golfo de Honduras para derrotar
os espanhóis que tentavam ocupar a região, que quando Gonzalo Guerrero foi
finalmente morto, isto vinte anos depois de seu naufrágio, o governador da
Guatemala, muito aliviado, correu a informar à Coroa Espanhola do fato.
Mas o processo histórico de dominação e
conquista que é pano de fundo para o livro e que nos serve de guia para viagens
por toda a América espanhola não se resume à conquista das Américas pelos
Europeus.
As mesmas trilhas e caminhos que seguimos nos tours na região mostram-nos a formação dos impérios americanos, como os Incas e os Astecas, que também recorreram às guerras, conquistas, sanções econômicas e outros instrumentos de cooptação para estender seus domínios sobre áreas que, até hoje, nos surpreendem, seja por sua extensão territorial, seja pela complexidade dos recursos necessários para bem gerenciá-los.
As mesmas trilhas e caminhos que seguimos nos tours na região mostram-nos a formação dos impérios americanos, como os Incas e os Astecas, que também recorreram às guerras, conquistas, sanções econômicas e outros instrumentos de cooptação para estender seus domínios sobre áreas que, até hoje, nos surpreendem, seja por sua extensão territorial, seja pela complexidade dos recursos necessários para bem gerenciá-los.
Apesar do livro se passar na região Maia,
principalmente sul do México e Guatemala, é na cidade do México e suas
imediações que melhor eu pude observar ilustrações deste processo de conquista
e dominação, principalmente na visita ao Museu Nacional de Antropologia e no
passeio pelas maravilhosas ruínas de Teotihuacan, a cidade onde os Deuses foram
criados.
Localizado em uma área nobre da cidade do
México, em meio ao Parque Chapultepec, o Museu Nacional de Antropologia é
formado por um conjunto de quatro prédios – me lembraram prédios do estilo do
Niemeyer em Brasília, com muito concreto – em torno de um pátio que permitem ao
visitante uma tour que parte do período em que os americanos ainda conviviam
com os mamutes e passa por as muitas civilizações e culturas que formam a
cultura do país.
Astecas, Maias, Olmecas, Teotihuacanos e
Toltecas, além de muitas outras tribos e suas manifestações culturais estão ali
expostos numa organização que ao mesmo tempo os distribui geograficamente, mas
também tenta mostrar como uma civilização sucedeu a outra, aproveitando de seus
desenvolvimentos e superando-as em suas conquistas e avanços, até a chegada dos
espanhóis.
Saindo do museu, cortando o trânsito sempre
complicado da maior metrópole da América Latina no sentido norte, o visitante
se dirige para o que deve ter sido a maior cidade da região durante o primeiro
milênio depois de Cristo: Teotihuacan. Construída entre o primeiro e sétimo séculos
depois de Cristo, a cidade sagrada é impressionante, mas que isto: é
monumental!
Imagine-se em uma avenida larga cercada por
prédios imponentes de lado a lado, com uma extensão de mais de dois quilômetros,
tendo seu início na cidadela, onde está o Templo de Quetzalcoatl e, na outra
extremidade, é coroada pelas majestosas pirâmides do Sol e da Lua.
Cuidando para não perder o fôlego, seja por
conta da impressionante beleza do lugar, seja por conta dos efeitos da
altitude, suba os muitos degraus da pirâmide do Sol, a mais alta delas, e lá de
cima contemple todo o maravilhoso espetáculo que se apresenta e que, sem
dúvidas, convida à reflexão.
Com isto em mente, se pergunte como uma
civilização, um povo, conseguiu construir tamanha maravilha há mais de 1500
anos atrás! Ou ainda, como e porque uma civilização tão impressionante
subitamente desapareceu da face da terra e só mais de 1000 anos depois as
ruínas deste impressionante complexo arquitetônico foram descobertas.
Não há como não especular sobre o inevitável
processo da ascensão e descenso de povos e culturas. Não tem como não se
perguntar se todo o conhecimento que permitiu a existência de Teotihuacan
simplesmente se perdeu ou será que os Mexicas e Astecas, grupo de nômades,
vindos do norte, que séculos depois transformaram uma área pantanosa onde
encontraram uma águia devorando uma cobra em cima de um cacto na capital do
maior império das Américas não se aproveitaram desta experiência histórica.
Antes de sair do complexo, dê uma passada no
pequeno museu que existe e que abriga algumas peças e informações sobre a
cidade – as melhores peças estão no Museu Nacional de Antropologia já visitado
– especialmente a bela maquete que dá uma dimensão bem mais objetiva do tamanho
e da complexidade dessa sociedade há muito desaparecida.
De volta à Cidade do México, outras muitas
evidências deste processo de interação e submissão de culturas e civilizações
vão aparecendo a cada olhar, a cada passeio.
Como na visita à Plaza de Armas da cidade, com
a curiosa vizinhança entre a Catedral e o antigo Templo Asteca onde Montezuma
teria sido assassinado por Cortês, num processo de conquista em que os
espanhóis contaram com o decisivo apoio de muitas outras tribos de ameríndios que
há anos eram submetidos pelos Astecas e viram na chegada dos europeus a chance
de se livrar do jugo de seu inimigo histórico.
Mesmo quando a vitória parece se voltar contra
o conquistador, como nas muitas derrotas que Gonzalo Guerrero aplicou sobre
seus compatriotas espanhóis, ainda assim o processo de dominação se apresenta,
já que para transformar os guerreiros Maia em vencedores, Guerrero teve que
treiná-los para adotar táticas e conceitos de guerra que eram tão alienígenas
para aquele povo quanto os cavalos que os espanhóis chegaram montados e as
armas de fogo que utilizaram.