A Nevskiy Prospect é a principal artéria da
cidade de São Petersburgo na Rússia. Partindo de uma das esquinas do parque em
frente ao Almirantado, vizinha à praça do Hermitage com seu imponente obelisco,
a avenida corre numa diagonal até alcançar a Estação Moscou, de onde partem
trens que ligam a Veneza do Norte à capital Russa.
Para os que esperam um bulevar, ao estilo
Haussmanniano, tal qual uma versão russa da Champs Elisee de Paris, se
decepcionarão. A avenida, projetada por Pedro, o Grande, cerca de um século
antes das idéias do Barão Haussmann influenciar as urbes de todo o mundo, está
mais para uma versão local da Broadway novaiorquina, claro que sem contar com o
Time Square.
Isto em nada desmerece a avenida que, se o
clima ajudar, deve ser aproveitada com uma caminhada sem pressa, apreciando
cada uma de suas esquinas e canais. Ademais dos palacetes da rica nobreza russa,
dos imponentes prédios comerciais e de muitas agências bancárias e casas de
câmbio, várias das principais igrejas de São Petesburgo estão alinhadas com a
avenida, a começar pela imponente Catedral de Nossa Senhora de Kazan, com sua
pretensão de replicar na Rússia Czarista o estilo da Catedral de São Pedro em
Roma.
De frente para a Catedral, do outro lado da avenida,
às margens do canal Griboedov, está o interessante prédio da Companhia Singer,
construído em estilo art nouveau, com uma excelente livraria (para russos, é
claro!) e seu famoso café. Lançando o olhar mais adiante, seguindo as calmas
águas do canal à sua frente vê-se, colorida e imponente, a Catedral do Sangue
Derramado, mandada construir por Alexandre III no exato local onde um atentado
promovido por anarquistas russos levou a morte de seu pai, o Tzar Alexandre II,
no ano de 1881.
Seguindo mais adiante, passando por bancos,
restaurantes, barzinhos bem simpáticos, pelo Palácio Stroganov (sim, eles
mesmos, que inventaram o famoso estrogonofe) e mais igrejas, alcança-se uma
aprazível pracinha, bem arborizada, a Ploshchad Ostrovskogo, também conhecida
como Jardins de Catarina, por abrigar uma estátua de Catarina, a Grande.
Ao redor da praça estão outros dois importantes
marcos da avenida: o prédio principal da Biblioteca Nacional da Rússia, a mais
antiga biblioteca oficial do país, com cerca de 33 milhões de títulos, incluindo
o mais antigo manuscrito em idioma russo, de 1057, e o Teatro
Alexandrinsky, o mais antigo teatro nacional russo, fundado em 1756.
Sentando em um banco da praça me pus a pensar
quão surpreendente saber ser esta a única estátua na cidade de São Petersburgo
– em local público – a homenagear a princesa alemã que ascendeu ao trono russo
depois de um golpe de Estado e que governou o país por mais de trinta anos,
transformando, modernizando o Império Russo, deixando marcas indeléveis na
cidade de São Petesburgo e seus arredores.
Silvia Miguens, no seu livro, Catarina,
a Grande, deixa que Figchen, nos conte sua trajetória de vida. De uma
criança herdeira da pequena nobreza alemã, nascida com o nome de Sofia Augusta Anhalt-Zerbst,
Princesa de Holstein, que sofria de graves problemas de coluna que a obrigaram
a usar um espartilho horroroso até a adolescência, viveu uma infância
relativamente tranqüila nas terras de sua família e se tornou “Sua Majestade,
Catarina II, imperatriz única e soberana de todas as Rússias” quando contava
com 33 anos de idade.
Os livros de história nos contam a trajetória
de Figchen-Catarina como a da mulher poderosa, que conspirou com amigos e
amantes para derrubar e depois matar seu marido: o politicamente fraco e
inconstante Pedro III. Muitos não acreditam que ela tivesse conhecimento desta
parte do plano mas, coincidentemente, o assassino de Pedro foi o irmão Orlov
mais novo. O golpe de Estado, dado quando o reinado de Pedro contava com menos
de seis meses, a levou a assumir o trono da Rússia, formar uma aliança com a
grande nobreza do país e com base nela governar por quase 35 anos, transformando
seu país em uma das potências mundiais no final do século XVIII.
Já o livro de Silvia Miguens é narrado na
primeira pessoa, como se fossem as memórias da Imperatriz, apresentando ao
leitor como Figchen percebia e enfrentava as muitas situações desafiadoras que
se colocaram ao longo de toda sua vida.
Ao descrever sua relação com Pedro Ulrico, o
futuro Czar, Figchen é muito sincera ao reconhecer que “amava o tio George (sua
paixão de adolescência), amava seus jogos, as suas idéias e a sua vitalidade.
Mas também amava a possibilidade de reinar sobre o que ouvira serem vinte
milhões de súditos. Sem dúvidas, com tio George era amor e com Pedro Ulrico não
havia amor possível, via-se bem que se tratava apenas de um pacto”. E mesmo
reconhecendo tal, não refreou sua ambição de governar a Rússia, ou melhor,
usando as palavras que a autora pôs em sua boca, em uma conversa com sua mãe
Catarina teria dito: “Não. Não quero governá-la; quero ser a Rússia. Devo ser a
Rússia, a verdadeira mãe-pátria do povo russo”.
O marido mostrou-se não apenas inapetente nas
artes do amor e da conquista, mas também e principalmente, despreparado para
governar, fazendo com que os grupos de oposição a ele se fortalecessem dentro da
própria Corte. Ainda assim, geraram Paulo, o herdeiro do casal, que logo foi
tirado de seu convívio para viver com a sogra, a Tzarina Isabel. Prática que
Catarina repetiria com os herdeiros de seu filho, apesar das queixas que tivera
da sogra.
O fato de ter cumprindo as expectativas da
Corte, gerando o Tzarevich, não afastou o futuro Tzar de suas amantes e seus brinquedos,
muito menos a Czarina de seus favoritos, como o Príncipe Potenkim, que a ajudou
a expandir a fronteira sul da Rússia, conquistando vastos territórios aos
Otomanos e colonizando as estepes sul da Ucrânia; Stanislau Poniatowsky, que
ela ajudou a se tornar rei da Polônia; ou como Gregory Orlov, provável pai de
um dos filhos ilegítimos de Catarina e que, ou morreram ao nascer, ou
foram enviados para serem criados por famílias da pequena nobreza russa,
distantes de São Petersburgo.
Também no campo político logo ficaram claras as
disputas entre a imperatriz, o Tzar e sua favorita, que procurava de todas as
formas assumir o papel de rainha e tentava manter Catarina afastada das coisas
do Império. Seu afastamento da corte, alojada no Peterhof, nas imediações de
São Petersburgo, não apenas ajudou a esconder mais uma gravidez não planejada,
como permitiu que ela conspirasse com os nobres leais – especialmente os irmãos
Orlov – que em 9 de julho de 1762 desencadearam o golpe de Estado que a levou
ao trono e mandou Pedro III para a prisão e depois para a morte.
O governo de Catarina navegou entre o
conservadorismo de medidas que davam cada vez mais poder à nobreza russa, os
boiardos, que exploravam brutalmente os camponeses e servos em toda a Rússia, e
o iluminismo que florescia por toda a Europa, onde Catarina mantinha
correspondências e amizade com figuras como Voltaire, Diderot e Montesquieu.
Catarina personificava o despotismo esclarecido da Rússia e governou com base
nesses princípios.
Para nós que visitamos São Petersburgo, a marca
de Catarina está evidente em, pelo menos, duas das principais atrações da
cidade: o Museu do Hermitage e o Palácio de Catarina, em Tsarkoe Selo, a cerca
de 50 Km do centro da cidade.
Foi Catarina, amante das artes e dos
intelectuais, que patrocinou a transformação do Palácio de Inverno dos Tzares
no hoje mundialmente famoso museu do Hermitage, quando em 1764 financiou a
aquisição de mais de duzentas obras de artistas flamengos e alemães, que
formaram o núcleo original de sua coleção. Nos anos seguintes a Tzarina
orientou a seus embaixadores por toda a Europa a comprar as coleções de nobres
falidos ou de herdeiros que não viam valor nas peças, fazendo que o acervo do
museu crescesse ano a ano.
Hoje, o Hermitage apresenta um acervo
comparável com os existentes em museus como o Louvre, o Met ou o Prado. Porém,
o museu de São Petersburgo supera todos eles por conta da beleza do prédio. São
salões e mais salões que impressionam tanto pelas obras expostas, como pela
suntuosidade de suas colunatas, escadarias, janelas e pisos. A profusão de
dourados da Capela Imperial, a beleza da sala do trono, que é de tirar o fôlego,
ou as escadarias construídas por Rastrelli, ainda no reinado da Tzarina Ana
Ivanovna, por si só justificariam a visita ao museu.
Dizem que para apreciar toda a riqueza do Hermitage
o visitante levaria uma década, ou mais!!! Felizmente para nós visitantes, que
temos apenas poucas horas para dar conta desta imensidão, saber da
impossibilidade de ver tudo, facilita que nos conformemos em escolher os pontos
altos em exposição, pegar um mapa (mesmo assim correndo sério risco de se
perder na imensidão do museu) e apreciar toda a beleza à sua volta.
Já o Palácio de Catarina, em Tsarkoe Selo, não oferece
ao visitante uma coleção de arte como a do Hermitage. Localizado nas imediações
de São Petersburgo, chegar lá por meio de trem ou ônibus é viável, mas
considerando as dificuldades de entender o alfabeto russo e de se comunicar no
idioma, já que são poucos os russos que falam inglês, o melhor mesmo é tomar
uma excursão. Várias delas são oferecidas todos os dias na própria Nevskiy
Prospect, nas imediações do Gostiny Dvor, o mais antigo shopping Center da
cidade, construído na segunda metade do Século XVIII. Por segurança, talvez seja melhor contratar o
pacote no hotel, mesmo.
Chegando lá, prepare-se para se assombrar com a
beleza do Palácio de Catarina. Sua fachada de um azul delicado, esconde um
palácio com uma arquitetura suntuosa, que une traços do barroco italiano com a
tradição russa. Abusa-se do dourado e, segundo a opinião da guia Russa, que
falava um espanhol fluente, a Galeria Dourada do Palácio supera em beleza a galeria
dos espelhos do Versalhes. Se não a supera, concorre de igual para igual e o
quarto de âmbar, este sim, é difícil de descrever.
Com todas as paredes cobertas com placas da
resina fossilizada, o quarto explode em uma mistura de tons de amarelo, laranja,
dourado, vermelhos e marrons que deixa o visitante boquiaberto. Apesar de
desmontado, dado por desaparecido e parcialmente destruído durante a Segunda
Grande Guerra, o impressionante esforço do povo russo, especialmente do povo de
São Petersburgo, conseguiu devolver ao mundo, há menos de dez anos, este
maravilhoso patrimônio da arte russa. É imperdível
Na saída, antes de tomar o caminho de
volta para o centro da cidade, vale a pena apreciar os belos jardins que
contornam o Palácio de Catarina ou, se o horário permitir, dar uma esticadinha
para conhecer o Pavlosvky, o palácio construído por seu filho Paulo, nos
terrenos que Catarina destinou para o seu sucessor quando do nascimento do seu
primeiro neto. O palácio não tem a ostentação dos dois anteriores, pelo
contrário, é pequeno e sóbrio quando comparado ao de Catarina ou ao Palácio de
Inverno, mas tem belos jardins e, de fato, é um dos poucos palácios que conheço
que dá a impressão que famílias normais ali viviam.
Ao chegar de volta ao centro, você pode até
estar satisfeito com os passeios, mas assim como os mais de trinta anos de
governo de Catarina, a Grande, transformaram a Rússia muito além da sua
contribuição como mecenas das artes e da arquitetura, São Petersburgo também
tem muito mais que o Hermitage e Tsarkoe Selo.
Mas não adianta tentar apreender tudo isto de
um só golpe. No caminho de volta para o seu hotel, provavelmente mais uma vez
passando pela Nevskiy Prospect, aproveite o gostoso fim de tarde para parar em
um dos muitos cafés da avenida, tome uma vodka gelada e aprecie a beleza das
cores da Veneza do Norte. Amanhã tem muito mais Rússia para visitar.