domingo, 20 de setembro de 2015

Catarina, Mecenas da Rússia...


A Nevskiy Prospect é a principal artéria da cidade de São Petersburgo na Rússia. Partindo de uma das esquinas do parque em frente ao Almirantado, vizinha à praça do Hermitage com seu imponente obelisco, a avenida corre numa diagonal até alcançar a Estação Moscou, de onde partem trens que ligam a Veneza do Norte à capital Russa.

Para os que esperam um bulevar, ao estilo Haussmanniano, tal qual uma versão russa da Champs Elisee de Paris, se decepcionarão. A avenida, projetada por Pedro, o Grande, cerca de um século antes das idéias do Barão Haussmann influenciar as urbes de todo o mundo, está mais para uma versão local da Broadway novaiorquina, claro que sem contar com o Time Square.

Isto em nada desmerece a avenida que, se o clima ajudar, deve ser aproveitada com uma caminhada sem pressa, apreciando cada uma de suas esquinas e canais. Ademais dos palacetes da rica nobreza russa, dos imponentes prédios comerciais e de muitas agências bancárias e casas de câmbio, várias das principais igrejas de São Petesburgo estão alinhadas com a avenida, a começar pela imponente Catedral de Nossa Senhora de Kazan, com sua pretensão de replicar na Rússia Czarista o estilo da Catedral de São Pedro em Roma.

De frente para a Catedral, do outro lado da avenida, às margens do canal Griboedov, está o interessante prédio da Companhia Singer, construído em estilo art nouveau, com uma excelente livraria (para russos, é claro!) e seu famoso café. Lançando o olhar mais adiante, seguindo as calmas águas do canal à sua frente vê-se, colorida e imponente, a Catedral do Sangue Derramado, mandada construir por Alexandre III no exato local onde um atentado promovido por anarquistas russos levou a morte de seu pai, o Tzar Alexandre II, no ano de 1881.

Seguindo mais adiante, passando por bancos, restaurantes, barzinhos bem simpáticos, pelo Palácio Stroganov (sim, eles mesmos, que inventaram o famoso estrogonofe) e mais igrejas, alcança-se uma aprazível pracinha, bem arborizada, a Ploshchad Ostrovskogo, também conhecida como Jardins de Catarina, por abrigar uma estátua de Catarina, a Grande.

Ao redor da praça estão outros dois importantes marcos da avenida: o prédio principal da Biblioteca Nacional da Rússia, a mais antiga biblioteca oficial do país, com cerca de 33 milhões de títulos, incluindo o mais antigo manuscrito em idioma russo, de 1057, e o Teatro Alexandrinsky, o mais antigo teatro nacional russo, fundado em 1756.

Sentando em um banco da praça me pus a pensar quão surpreendente saber ser esta a única estátua na cidade de São Petersburgo – em local público – a homenagear a princesa alemã que ascendeu ao trono russo depois de um golpe de Estado e que governou o país por mais de trinta anos, transformando, modernizando o Império Russo, deixando marcas indeléveis na cidade de São Petesburgo e seus arredores.

Silvia Miguens, no seu livro, Catarina, a Grande, deixa que Figchen, nos conte sua trajetória de vida. De uma criança herdeira da pequena nobreza alemã, nascida com o nome de Sofia Augusta Anhalt-Zerbst, Princesa de Holstein, que sofria de graves problemas de coluna que a obrigaram a usar um espartilho horroroso até a adolescência, viveu uma infância relativamente tranqüila nas terras de sua família e se tornou “Sua Majestade, Catarina II, imperatriz única e soberana de todas as Rússias” quando contava com 33 anos de idade.

Os livros de história nos contam a trajetória de Figchen-Catarina como a da mulher poderosa, que conspirou com amigos e amantes para derrubar e depois matar seu marido: o politicamente fraco e inconstante Pedro III. Muitos não acreditam que ela tivesse conhecimento desta parte do plano mas, coincidentemente, o assassino de Pedro foi o irmão Orlov mais novo. O golpe de Estado, dado quando o reinado de Pedro contava com menos de seis meses, a levou a assumir o trono da Rússia, formar uma aliança com a grande nobreza do país e com base nela governar por quase 35 anos, transformando seu país em uma das potências mundiais no final do século XVIII.

Já o livro de Silvia Miguens é narrado na primeira pessoa, como se fossem as memórias da Imperatriz, apresentando ao leitor como Figchen percebia e enfrentava as muitas situações desafiadoras que se colocaram ao longo de toda sua vida.

Ao descrever sua relação com Pedro Ulrico, o futuro Czar, Figchen é muito sincera ao reconhecer que “amava o tio George (sua paixão de adolescência), amava seus jogos, as suas idéias e a sua vitalidade. Mas também amava a possibilidade de reinar sobre o que ouvira serem vinte milhões de súditos. Sem dúvidas, com tio George era amor e com Pedro Ulrico não havia amor possível, via-se bem que se tratava apenas de um pacto”. E mesmo reconhecendo tal, não refreou sua ambição de governar a Rússia, ou melhor, usando as palavras que a autora pôs em sua boca, em uma conversa com sua mãe Catarina teria dito: “Não. Não quero governá-la; quero ser a Rússia. Devo ser a Rússia, a verdadeira mãe-pátria do povo russo”.

O marido mostrou-se não apenas inapetente nas artes do amor e da conquista, mas também e principalmente, despreparado para governar, fazendo com que os grupos de oposição a ele se fortalecessem dentro da própria Corte. Ainda assim, geraram Paulo, o herdeiro do casal, que logo foi tirado de seu convívio para viver com a sogra, a Tzarina Isabel. Prática que Catarina repetiria com os herdeiros de seu filho, apesar das queixas que tivera da sogra.

O fato de ter cumprindo as expectativas da Corte, gerando o Tzarevich, não afastou o futuro Tzar de suas amantes e seus brinquedos, muito menos a Czarina de seus favoritos, como o Príncipe Potenkim, que a ajudou a expandir a fronteira sul da Rússia, conquistando vastos territórios aos Otomanos e colonizando as estepes sul da Ucrânia; Stanislau Poniatowsky, que ela ajudou a se tornar rei da Polônia; ou como Gregory Orlov, provável pai de um dos filhos ilegítimos de Catarina e que, ou morreram ao nascer, ou foram enviados para serem criados por famílias da pequena nobreza russa, distantes de São Petersburgo.

Também no campo político logo ficaram claras as disputas entre a imperatriz, o Tzar e sua favorita, que procurava de todas as formas assumir o papel de rainha e tentava manter Catarina afastada das coisas do Império. Seu afastamento da corte, alojada no Peterhof, nas imediações de São Petersburgo, não apenas ajudou a esconder mais uma gravidez não planejada, como permitiu que ela conspirasse com os nobres leais – especialmente os irmãos Orlov – que em 9 de julho de 1762 desencadearam o golpe de Estado que a levou ao trono e mandou Pedro III para a prisão e depois para a morte.

O governo de Catarina navegou entre o conservadorismo de medidas que davam cada vez mais poder à nobreza russa, os boiardos, que exploravam brutalmente os camponeses e servos em toda a Rússia, e o iluminismo que florescia por toda a Europa, onde Catarina mantinha correspondências e amizade com figuras como Voltaire, Diderot e Montesquieu. Catarina personificava o despotismo esclarecido da Rússia e governou com base nesses princípios.

Para nós que visitamos São Petersburgo, a marca de Catarina está evidente em, pelo menos, duas das principais atrações da cidade: o Museu do Hermitage e o Palácio de Catarina, em Tsarkoe Selo, a cerca de 50 Km do centro da cidade.

Foi Catarina, amante das artes e dos intelectuais, que patrocinou a transformação do Palácio de Inverno dos Tzares no hoje mundialmente famoso museu do Hermitage, quando em 1764 financiou a aquisição de mais de duzentas obras de artistas flamengos e alemães, que formaram o núcleo original de sua coleção. Nos anos seguintes a Tzarina orientou a seus embaixadores por toda a Europa a comprar as coleções de nobres falidos ou de herdeiros que não viam valor nas peças, fazendo que o acervo do museu crescesse ano a ano.

Hoje, o Hermitage apresenta um acervo comparável com os existentes em museus como o Louvre, o Met ou o Prado. Porém, o museu de São Petersburgo supera todos eles por conta da beleza do prédio. São salões e mais salões que impressionam tanto pelas obras expostas, como pela suntuosidade de suas colunatas, escadarias, janelas e pisos. A profusão de dourados da Capela Imperial, a beleza da sala do trono, que é de tirar o fôlego, ou as escadarias construídas por Rastrelli, ainda no reinado da Tzarina Ana Ivanovna, por si só justificariam a visita ao museu.

Dizem que para apreciar toda a riqueza do Hermitage o visitante levaria uma década, ou mais!!! Felizmente para nós visitantes, que temos apenas poucas horas para dar conta desta imensidão, saber da impossibilidade de ver tudo, facilita que nos conformemos em escolher os pontos altos em exposição, pegar um mapa (mesmo assim correndo sério risco de se perder na imensidão do museu) e apreciar toda a beleza à sua volta.

Já o Palácio de Catarina, em Tsarkoe Selo, não oferece ao visitante uma coleção de arte como a do Hermitage. Localizado nas imediações de São Petersburgo, chegar lá por meio de trem ou ônibus é viável, mas considerando as dificuldades de entender o alfabeto russo e de se comunicar no idioma, já que são poucos os russos que falam inglês, o melhor mesmo é tomar uma excursão. Várias delas são oferecidas todos os dias na própria Nevskiy Prospect, nas imediações do Gostiny Dvor, o mais antigo shopping Center da cidade, construído na segunda metade do Século XVIII. Por segurança, talvez seja melhor contratar o pacote no hotel, mesmo.

Chegando lá, prepare-se para se assombrar com a beleza do Palácio de Catarina. Sua fachada de um azul delicado, esconde um palácio com uma arquitetura suntuosa, que une traços do barroco italiano com a tradição russa. Abusa-se do dourado e, segundo a opinião da guia Russa, que falava um espanhol fluente, a Galeria Dourada do Palácio supera em beleza a galeria dos espelhos do Versalhes. Se não a supera, concorre de igual para igual e o quarto de âmbar, este sim, é difícil de descrever.

Com todas as paredes cobertas com placas da resina fossilizada, o quarto explode em uma mistura de tons de amarelo, laranja, dourado, vermelhos e marrons que deixa o visitante boquiaberto. Apesar de desmontado, dado por desaparecido e parcialmente destruído durante a Segunda Grande Guerra, o impressionante esforço do povo russo, especialmente do povo de São Petersburgo, conseguiu devolver ao mundo, há menos de dez anos, este maravilhoso patrimônio da arte russa. É imperdível

Na saída, antes de tomar o caminho de volta para o centro da cidade, vale a pena apreciar os belos jardins que contornam o Palácio de Catarina ou, se o horário permitir, dar uma esticadinha para conhecer o Pavlosvky, o palácio construído por seu filho Paulo, nos terrenos que Catarina destinou para o seu sucessor quando do nascimento do seu primeiro neto. O palácio não tem a ostentação dos dois anteriores, pelo contrário, é pequeno e sóbrio quando comparado ao de Catarina ou ao Palácio de Inverno, mas tem belos jardins e, de fato, é um dos poucos palácios que conheço que dá a impressão que famílias normais ali viviam.

Ao chegar de volta ao centro, você pode até estar satisfeito com os passeios, mas assim como os mais de trinta anos de governo de Catarina, a Grande, transformaram a Rússia muito além da sua contribuição como mecenas das artes e da arquitetura, São Petersburgo também tem muito mais que o Hermitage e Tsarkoe Selo.

Mas não adianta tentar apreender tudo isto de um só golpe. No caminho de volta para o seu hotel, provavelmente mais uma vez passando pela Nevskiy Prospect, aproveite o gostoso fim de tarde para parar em um dos muitos cafés da avenida, tome uma vodka gelada e aprecie a beleza das cores da Veneza do Norte. Amanhã tem muito mais Rússia para visitar.

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