quinta-feira, 21 de abril de 2016

Vichy: Capital de uma França Dividida.



Não sei se por conta dos 70 anos do fim da Segunda Grande Guerra ou por mera coincidência, mas nos últimos meses inúmeros têm sido os livros – romances, diários, relatos – tratando sobre eventos e curiosidades da guerra que matou milhões de pessoas e transformou radicalmente o mundo em que vivemos.

Outro dia comecei a ler O Rouxinol, romance histórico da inglesa Kristin Hannah que conta a história de duas irmãs que por suas condições e circunstâncias acabam participando de maneiras bem distintas da guerra na França.

Enquanto a irmã mais velha, Vianne, que no começo do conflito já era casada e tinha filhos, precisa se ajustar à realidade da ocupação alemã, sua irmã mais nova, Isabelle, com pouco mais de 19 anos na época, se rebela e vai participar ativamente do movimento de resistência francesa.

O romance, que se passa entre a Paris ocupada, a pequena cidade ficcional de Carriveau no vale do Loire e a fronteira da França com a Espanha, aproveita o dilema vivido pelas duas irmãs Rossignol para apresentar o dilema que quase toda a população francesa teve que enfrentar durante a Segunda Guerra, obrigada a conviver, compactuar e, em muitos casos, colaborar com os ocupantes nazistas. Mas ao tempo que colaborava, se revoltava, resistia e sabotava as tropas nazistas.

Assim no país, assim entre as irmãs. Além de perder o marido para a guerra, que virou prisioneiro logo nos primeiros meses do combate, Vianne tem os quartos da casa em que vive com sua filha confiscados pelo exército alemão e durante toda ocupação é obrigada a conviver e servir os oficiais alemães que ficam ali hospedados.

Sua irmã, ao contrário, depois de expulsa de Paris pelo pai, chega a Carriveau para viver com a irmã, mas logo se mostra incapaz de conviver com aquela situação de humilhante dominação e finda por aderir ao movimento de resistência francesa, se tornando importante agente do movimento, ajudando pilotos aliados que caem atrás das linhas alemãs a escapar do país pela fronteira espanhola.

Claro que as diferentes escolhas colocam as irmãs em posições antagônicas no palco da guerra e, em certo sentido, permite que o leitor especule sobre o sentimento de “coisa mal resolvida” do período em que parcela da população francesa, sob a batuta do governo colaboracionista de Vichy e do Marechal Petáin, conviveu, transacionou, lucrou e compactuou com o nazismo nas suas piores manifestações.

Talvez por isto que o romance, embora pudesse proporcionar uma interessante viagem entre Paris e os Pirineus, me leve para a antiga capital do governo colaboracionista, uma pequena e pacata estância terapêutica, com suas águas minerais curativas, localizada na parte central da França: Vichy.

Frequentada por suas qualidades terapêuticas e medicinais desde tempos imemoriais, as fontes de águas curativas de Vichy tiveram seu auge durante o período de Napoleão III, na segunda metade do século XIX, quando reis, príncipes e a nobreza de boa parte da Europa vinham à cidade-balneário para tratamentos, festas e, principalmente, para verem e serem vistos.

Depois da Primeira Grande Guerra, a cidade ficou esquecida até que, depois da invasão alemã em 1940 e do acordo firmado por Petáin com Hitler, Vichy foi elevada à categoria de capital do governo colaboracionista, enquanto que na Inglaterra se proclamava o governo da França Livre.

Estive em Vichy em novembro de 2014 para comemorar o aniversário de 70 anos do meu pai. Naquele momento eu estava em Paris, minha irmã Lília morando em Genebra e a minha outra irmã, a Ana, estava em Poitiers fazendo seu mestrado. Precisávamos encontrar um lugar para festejar que fosse equidistante para todos nós e a escolha recaiu sobre Vichy.

Vichy é uma “pequena e pacata cidade” no maciço central da França, com ruas arborizadas que ganham um colorido todo especial nos meses de outono. Às margens do Rio Allier há um parque público, com direito a calçadão e parquinhos para as crianças brincarem. Nos dias de sol no outono ambos ficam apinhados de jovens famílias que aproveitam os últimos dias de sol e algum calor antes da chegada do inverno.

São muito poucas as referências do período em que a cidade foi capital da França. É verdade que no parque defronte ao Cassino e à Ópera, onde estão algumas das fontes de águas termais mais antigas, há uma placa em que o governo da França reconhece o lastimável papel que desempenhou no triste evento que entrou para a história como o massacre do Velódromo de Inverno, quando milhares de judeus franceses foram entregues pelo Governo de Vichy aos campos de concentração alemães.

Depois de alguma pesquisa ainda encontrei um livro que fala dos prédios da cidade que abrigaram ministérios, embaixadas e outros órgãos governamentais durante o período da ocupação, mas é só isto. A sensação é que ainda há um sentimento local e nacional de vergonha por ter participado de uma ridícula farsa, um governo fantoche e subalterno.

Em “O Rouxinol” há uma tentativa, por parte da autora, de mostrar – não diria defender – as difíceis escolhas a que foram expostas as pessoas que ficaram na área ocupada pelos nazistas e que, para poderem sobreviver, de uma forma ou de outra precisaram conviver com a nova realidade, trabalhando com e para os alemães, tentando levar uma vida “normal” nos mais de quatro anos que grande parte da França ficou sob o tacão do nazismo.

Ao fim, o leitor fica com a sensação de que a irmã que fica e que “colabora” acaba sendo tão brava e tão sobrevivente quanto aquela que se converte em heroína da resistência francesa. É como se o livro dissesse que não há uma forma apenas de resistir a qualquer tipo de opressão.

Para nós, que estivemos em Vichy setenta anos depois que a cidade deixou de ser capital de uma França dividida, o que valeu mesmo foi o excelente jantar no restaurante Maison Decoret, onde também estávamos hospedados, quando comemoramos o aniversário do Dr. Paulo e reafirmamos nossa convicção, que é mensagem do livro de Kristin Hannah, que qualquer que seja a adversidade, é na família que encontramos a força para seguir vivendo.

Pena que o Carlos não pôde ir.

domingo, 24 de janeiro de 2016

O Espírito da Borgonha



Livros, viagens e vinhos formam uma combinação quase imbatível!

Assim, quando comprei o livro “A História do Romanée-Conti e a Trama para Destruir o Melhor Vinho do Mundo”, do jornalista americano Maximillian Porter, já desconfiava que ele poderia render uma página para o Ler & Viver, mas não tinha certeza.

A tal trama para destruir os vinhedos da Romanée-Conti (DRC), estrela maior da produção de vinhos da região de Borgonha, no leste da França, tem início quando em 2010 um ex-presidiário oriundo da região de Champagne tentou envenenar as vinhas do Domaine como forma de extorquir seus proprietários e com isto obter um resgate valioso. 
 
A trama policial não rendeu um romance de primeira grandeza. Situo a narrativa da investigação francesa a léguas de distância das sofisticadas conclusões de um Poirot ou da ação cerebral de um Holmes, que nos fazem investir em noites de insônia para chegar o mais depressa possível ao criminoso e depois ficar lamentando porque o livro acabou tão rapidamente. 
 
Mas o livro tem suas qualidades para quem viaja na leitura. Pois, narrar da tentativa de extorsão permitiu ao autor contar a história da vinicultura na Borgonha, desde o período do império Romano, passando pela chegada dos monges beneditinos na região na baixa idade média, pela história da compra da vinícola pelo Príncipe Conti, primo-irmão do Rei Luis XV da França e adversário político da famosa Madame Pompadour, com quem disputou a compra dos já famosos vinhedos da Côte D’Or, até chegar à família Vilaine, atual proprietária do DRC e protagonista do evento policialesco narrado no livro.

Assim, apesar de um romance policial de qualidade sofrível, o livro vale pelas interessantes informações que traz sobre os vinhos da região e do mundo, informações e explicações sobre a história da vinicultura na França e especialmente na região de Borgonha; explicações sobre as denominações de origem controlada, sobre o funcionamento do mercado de vinhos ou sobre como os vinhedos e os vignerons franceses sobreviveram às as duas grandes guerras deste século XX.

Coisas que são interessantes para quem aprecia o vinho ou que podem ser usadas para animar uma conversa entre amigos quando o papo no restaurante já começa a perder ritmo. Tipo: saber o que representa a classificação “Gran Cru”, coisa que eu até então ignorava; ou, a curiosa história do “Julgamento de Paris”, em meados dos anos 70, quando os cabernet e os chardonnay californianos venceram seus rivais de Bordeaux (os tintos) e da Borgonha (os brancos) em uma prova de degustação com a participação de renomados conhecedores do vinho, a maior parte deles franceses!!

Mas o bom mesmo do livro é voltar à Dijon e à Borgonha! São as referências à cidade, à Beaune, à Autun e às muitas pequenas vilas pelas quais se vai apreciando a maravilhosa paisagem das pequenas fazendas, dos vinhedos e de uma vida que corre, pelo menos na aparência, de uma forma tranquila e pacata.

Dijon, a principal cidade da Cotê D’Or e da região, foi sede de Reino, de Ducado e é uma das cidades mais charmosas que conheci. O centro histórico da cidade, patrimônio da UNESCO é bem grande e oferece um sem número de atrações para quem está de passagem ou para quem pretende gastar alguns dias aproveitando as delícias da região.

Lá chegamos no começo da noite e nos hospedamos no Hotel Wilson que, inicialmente, causou uma má impressão porque parecia uma casa de taipa, de tão baixa que era a edificação. Depois descobrimos que o hotel era muito antigo e o que havia subido era o nível da rua, ou seja, o prédio não era baixo a calçada é que era alta e, ao contrário do que temíamos, era agradável, aconchegante e muito bem localizado.

À noite Dijon é linda! Os principais monumentos recebem uma iluminação especial que destaca seus traços mais imponentes e atrai a atenção do visitante para os pontos altos da cidade, a começar pela belíssima Place de La Liberátion com seu arco de colunas, que fica de frente para o antigo palácio ducal que hoje abriga o Museu de Belas Artes.

De lá, as corujas – símbolo da cidade – formam uma trilha com setas de bronze que orientam os turistas em um passeio por todo o centro histórico, não deixando que você perca nenhuma das principais atrações da cidade, recheada de belas igrejas e interessantes prédios e museus. Mas à noite, com frio, o bom mesmo é ir para o Marché des Halles, que nesta hora estará fechado, e escolher um dos vários restaurantes que ficam à sua volta para apreciar a comida da região e, é claro, os vinhos.

À luz do dia a cidade é ainda mais bonita e cheia de vida. As ruas do centro ficam cheias de pessoas e de animação. Mesmo nos dias mais frios, as lojas, os cafés, os restaurantes, os museus e as esquinas da Rue da La Liberté e de seu entorno estavam ocupados, sem estarem lotados. As pessoas tomavam a cidade para si e isto fazia que houvesse este clima de tranquila segurança, que faz com que se queira passear por todos os lugares, entrar em cada beco, sentar em cada pracinha e observar a vida acontecendo.

Mas a Borgonha é mais que Dijon. A estrada que liga Dijon a Beaune, a capital dos vinhos, passa pelos principais vinhedos da região e deve ser de uma beleza cinematográfica no período da safra. Em novembro, quando por passamos por lá, as videiras já estavam descansando, esperando a chegada da primavera para voltar a produzir, assim o campo está praticamente sem movimento. 

Mas os campos verdes, as pequenas propriedades rurais com suas vacarias, seus cavalos e suas outras criações, as variedades de cores do fim do outono, saindo de um verde escuro, passando por várias tonalidades de verde, laranja, amarelo, marrom e vermelho, dão a quem passeia pela região a impressão de que seria possível, para qualquer um, pintar um belíssimo quadro ou tirar aquela foto premiada.

Sentado em uma antiga cerca de pedras do período romano, apreciando um delicioso Pinot Noir enquanto o sol da tarde explorava todas as possibilidades das cores na paisagem dos campos nas imediações de Autun, não há como não concordar com Porter quando ao final do seu livro diz “que a vida é boa, não importa que mal possa haver no mundo, existe a Borgonha, existe o vinho, existe luz, existe o amor”.