domingo, 10 de outubro de 2021

No Reino das Duas Sicilias

 


Aos mais incautos ou menos informados, uma viagem para a Itália é ir a Roma e ver o Papa, ir a Veneza para um passeio de gôndolas, ir a Pisa e tirar aquela célebre foto escorando a torre inclinada ou, quem sabe, ir a Verona e passar a mão no seio da Julieta.

A Itália é tudo isso, também, mas é uma pequena amostra de como o país é formado por seus vários “paesi”. Desse jeito mesmo! Para os italianos há muitos países diferentes naquele território com formato de bota e essa foi uma das principais descobertas de Suger de Petit Pons, magister em medicina, um dos protagonistas do livro “O Labirinto no Fim do Mundo” de Marcello Simoni.

Interessantemente, a história começa em dois pontos distantes da Itália, no longínquo ano de 1229. No que hoje seria a Alemanha, Konrad von Marburg, um inquisidor designado pelo Papa para investigar e desbaratar uma seita de luciferianos começa sua missão, enquanto que em Paris, um mestre de medicina expulso da Universidade de Notre Dame presencia um estranho assassinato e aceita a missão de entregar um “manto sagrado” a um desconhecido na cidade de Milão, uma vez que, depois de exilado de sua Cátedra em Paris, tinha decidido mudar-se para Salerno, onde poderia se dedicar aos estudos e à prática da medicina.

A partir daí as histórias se entrelaçam porque, supostamente, o tal manto é para ser entregue ao líder da dita seita de adoradores do diabo, um homem oriundo da Espanha, conhecido pela alcunha de Homo Niger, que é o objeto da perseguição implacável do monge alemão e do sicário da arma misteriosa.

Depois de rápidas passagens e peripécias pelo norte da Itália e pelos estados papais, a história nos leva para Nápoles, onde o mestre de medicina, agora acompanhado pelo mercador de relíquias Ignazio de Toledo e seu filho, finalmente se encontram frente a frente com Marburg e com o assassino misterioso. Ali, são capturados e aprisionados no Castelo do Ovo, que havia sido transformado em uma fortaleza por Frederico II, o Sacro Imperador Romano Germânico.

No afã de provar sua inocência e de escapar à perseguição religiosa, Ignazio e seu filho fogem do Castelo e partem em busca do tal Homo Niger seguindo na direção da Sicilia, passando pelas cidades de Salerno, Messina, Palermo e tantas outras que seis séculos depois iriam formar o Reino das Duas Sicílias, depois que os Reinos de Nápoles e da Sicília foram suprimidos pelo Congresso de Viena e transformados em uma única entidade estatal.

A viagem de fuga acossada pelos perseguidores papais certamente impediu que os personagens aproveitassem as belezas e os encantos da parte sul da península italiana, mas, setecentos anos mais tarde, resolvi comemorar meu aniversário naquela região e fiz, de carro, percurso similar àquele feito pelos heróis e vilãos de Simoni.

O ponto de partida foi Nápoles, primeira capital do Reino das Duas Sicílias. A cidade contrasta a beleza de sua baia e seus sítios históricos com ruas sujas como nas mais pobres capitais do terceiro mundo. Maravilhas do patrimônio cultural mundial com um trânsito absolutamente caótico. Uma culinária esplendorosa, entre outras coisas foi lá que inventaram a pizza margherita, e o restaurante ainda está lá, concorridíssimo, com um serviço que às vezes depõe contra o sabor. Assim me pareceu Nápoles, uma terra de contrastes.

O Castelo do Ovo, onde nossos personagens ficaram presos ainda está lá, para contar a milenar história da cidade, já que as primeiras edificações naquela área são de antes do período romano. Nas proximidades do castelo, subindo a avenida costeira, chega-se à ampla Piazza del Plebiscito, construída no período em que Napoleão Bonaparte era o mandachuva, que com seu perfil arquitetônico moderno contrasta com as construções medievais do Castel Nouvo e de outros edifícios da região.

Perto da cidade, pegando a estrada em direção ao sul, está o Vesúvio e as ruínas de Pompéia e Hercolano, parada obrigatória na primeira, se o tempo disponível não for muito, para se assombrar com aquela impressionante fotografia do império romano. Não há como não se deslumbrar com a extensão das ruínas de Pompéia, uma cidade inteira conservada, nos seus mínimos detalhes.

Continuando rumo ao sul, chega-se à Costa Amalfitana com suas lindas cidadezinhas, como Amalfi, Sorrento, Ravelo e Positano. Pena que era inverno e como estava frio não pudemos aproveitar os incontáveis bares e restaurantes com deliciosas vistas do mar, onde certamente teríamos aproveitado os vinhos e frutos do mar da região, por outro lado não tivemos que disputar cada centímetro da praia ou das ruas com um enxame de turistas.

Como quase todos os restaurantes de praia estavam fechados, almoçamos no delicioso Caruso, na encantadora Sorrento, em plena terça feira gorda. Ao sairmos do almoço, nos deparamos com o desfile de carnaval da cidade onde, como esperado, havia um bloco formado, majoritariamente, por brasileiros.

No fim do dia passamos ainda por Salerno, destino nunca alcançado por Suger e, assim como ele, pouco proveito tiramos da visita. A cidade, pelo menos no século XXI, não impressiona nem encanta como as suas vizinhas nos arredores de Amalfi e assim, seguimos rumo sul, na direção da Reggio Calabria, tal qual fizeram por barco de fugitivos e seus perseguidores no romance do fim do mundo.

Assim como os personagens de Simoni, entramos na Sicilia pelo porto de Messina e, tal qual os visitantes do Século XIII logo seguimos em busca de conhecer a mistura de culturas, povos e tradições que fazem da ilha ao sul da Itália um país em todo o seu particular. É uma mistura de romano, árabe, espanhol, grego e o que mais você lembrar, porque por séculos a ilha era uma encruzilhada no Mediterrâneo, porto de chegada e partida de Fenícios, Romanos, Cruzados, Sarracenos…

De Messina seguimos para Taormina, com suas ruínas gregas, suas escadarias, suas deliciosas ruelas de pedra. Uma cidadezinha charmosa e, mesmo no inverno, com inúmeras opções de restaurantes e bares para aproveitar. Isso sem falar do seu Duomo de pedra, pequeno, central e mais que charmoso.

De Taormina seguimos para Catânia e mais uma vez passamos por vulcões, dessa vez o Etna, tranquilo, por então, mas sem nos deixar esquecer que é o vulcão mais ativo da Europa, frequentemente dando sustos em visitantes e moradores da Região. De Catânia seguimos para a segunda e última capital do Reino das Duas Sicilias, e assim como fizeram os personagens de Simoni, chegamos à bela Palermo.

Depois de passear na parte central da cidade, com direito a visitas ao Teatro Massino, a caminhadas na Via Maqueda, à Fonte da Vergona e as muitas e belas igrejas da cidade, chegamos ao Palácio dos Normandos e à Catedral de Palermo, com direito a visitar a belíssima Capela Palatina.

Antes de partir, tomamos o carro e subimos para visitar Monreale, uma cidadezinha ao lado de Palermo – tem ônibus ligando o centro da cidade a ela – que tem na sua catedral a principal atração. Construída no Século XII a igreja impressiona pela beleza do seu interior, todo decorado com pinturas em estilo bizantino, reproduzindo o encontro de culturas que caracteriza a Ilha ao sul da bota.

Enquanto no romance de Simoni, depois de muito fugir e de muitas mortes pelas mãos do matador da arma misteriosa, os personagens principais se encontram aprisionados, são levados a julgamento perante um tribunal formado pelos monges de Monreale e têm seu encontro com o Imperador Frederico II. Só então encontram a saída para sua difícil situação e tomam um barco de volta para a Espanha.

Nós, depois de mais de 800 Km de estradas, conhecendo o território das Duas Sicílias, deixamos Palermo de avião, em regresso à Roma e de lá para casa, com a certeza de que, longe de ser um fim de mundo, aquela região deve ser um começo para muitas outras viagens.


domingo, 27 de junho de 2021

Pontes Sobre a Bósnia.

 


 


Most significa ponte em vários idiomas dos países centrais europeus. Em esloveno, eslovaco, sérvio, croata ou bósnio, a “obra d´arte” que une as margens de um rio leva este nome. Na linguagem figurada, a construção de pontes ou a sua travessia estão sempre associadas à união entre partes, à junção de diferenças ou à superação de obstáculos. 

Em mais de uma ocasião, neste blog, às pontes recorri para dar materialidade a sentimentos e percepções em minhas viagens literárias mas em nenhuma das ocasiões esta figura de linguagem se adequasse tão bem quanto à Bósnia e Herzegovina.

Em setembro de 2019, antes que a COVID nos obrigasse a uma indesejada pausa nas minhas excursões pelo mundo, estive na Bósnia, como parte de uma viagem por vários países nascidos da dissolução da antiga Iugoslávia, embora antes disto, por conta dos livros, já desejasse conhecer o país. Seu passado de conflitos e sua posição de passagem entre duas culturas me atraíram desde as primeiras páginas do livro “A Ponte sobre o Drina”.

A Ponte sobre o Drina é um desses casos em que a vontade de ler, acima de qualquer restrição, revela quão grande pode ser a nossa ignorância sobre as coisas do mundo. Comprei o livro em um sebo das ruas de Lisboa, desses que os títulos são vendidos por 3 euros, para ir lendo quando a oportunidade surgisse. Nunca tinha ouvido falar no livro nem em seu autor, o croata católico nascido na Bósnia, Ivo Andric. Só depois de terminada a leitura, descobri que seu autor tinha recebido o Nobel de Literatura em 1961 e que A Ponte é uma de suas principais obras.

O livro, que tem como personagem principal a ponte que lhe dá nome, começa com a história de uma criança cristã, que em 1516 é sequestrada pelos Turcos para ser educado na Corte Otomana, como paga de sangue para o Sultão. Sua pobre mãe tenta, em vão, seguir os sequestradores para recuperar o filho. Mas na travessia do Drina, ela fica para trás e dá por perdido o pequeno rebento.

Os anos passam e o jovem, agora totalmente adaptado à cultura otomana se transforma no Grão Vizir Mehkmedpaxá Sokollu e, talvez em homenagem à sua mãe, talvez por questões da geopolítica da época, faz construir uma ponte sobre o rio Drina, na sua cidade natal de Víchegard, exatamente onde sua mãe um dia o viu partir para sempre.

A ponte é transformada em protagonista de um romance que trata da simples vida cotidiana daquela pequena cidade, contando 300 anos da história daquele pedaço de mundo, de um lugar onde o oriente e o ocidente se encontram. Onde cristãos e muçulmanos se juntam e se separam. Onde Europa e Ásia negociam, confabulam e guerreiam.

A velha ponte só perde sua importância e acaba destruída com a expansão das ferrovias e com o advento da Primeira Grande Guerra. Ainda assim, no universo  ponte, microcosmo da atual Bósnia e Herzegovina, a ponte sobre o Drina é substituída por outra, esta em Sarajevo, personagem icônica de um dos principais momentos da história ocidental do Século XX: a Ponte Latina.

Foi nas suas imediações, no centro da capital bósnia, que o Arquiduque do Império Austro-Húngaro, Franz Ferdinand, foi assassinado por um ativista sérvio, o que serviu de estopim para a primeira guerra mundial. O próprio Andric, que com seus 22 anos militava no movimento nacionalista Mlada Bosna chegou a ser preso como suspeito de ter participado da trama e começou a escrever seus primeiros poemas durante a temporada em que sofreu suas agruras na prisão de Maribor.

Quando somadas: a história do Drina; o assassinato do arquiduque na Ponte Latina; e, as trágicas cenas da guerra de Sarajevo que, impressionados, muitos de nós pudemos acompanhar durante os longos meses que durou aquele conflito em meados dos anos noventa, a viagem àquele país não tinha como não ser instigante, como de fato foi.

A Bósnia é, hoje, aos olhos dos que viajam para aquelas bandas, a prima pobre da Croácia. Um país que há cerca de 30 anos estava sendo dilacerado por um terrível conflito étnico, que chocou o mundo por sua barbárie e sua violência, vem aos poucos tentando se recompor dos traumas vividos. Irmãos, famílias, vizinhos que até outro dia estiveram lado a lado, nas escolas, nos trabalhos ou no convívio social cotidiano, repentinamente estavam armados e em campos opostos da batalha. Ou melhor, das batalhas. Já que eles mesmos entendem que a guerra de Sarajevo, na Bósnia, foi uma, enquanto que a de Mostar, na Herzegovina, foi outra.

Na primeira, Bósnios Mulçumanos (Bosniacs) se uniram a Croatas e até alguns Sérvios cristãos, contra aqueles Sérvios que formaram a República Sérvia na Bósnia, que até hoje existe. Na segunda, a população croata da Herzegovina, que é majoritária, queria se juntar à nova Croácia, enquanto os Sérvios à Sérvia e os Bósnios à Bósnia, fazendo uma guerra de três lados que, a depender da conveniência, se aliavam ou se matavam.

Em suma, um espetáculo macabro que, ainda hoje, deixa viva as feridas do período: nas ruas marcadas pelos morteiros, nos prédios ainda crivados de projéteis, nas “atrações turísticas”, na organização política e administrativa do país e, principalmente, nas vidas das pessoas comuns que vivem com suas perdas e suas dores ainda tão próximas. A nossa jovem guia do walking tour pelas ruas de Sarajevo tinha cerca de 20 anos e seus pais, que tinham quase a mesma idade dela quando a guerra começou, participaram do movimento de resistência da população de Sarajevo nos mais de dois anos de cerco à cidade e sofreram incontáveis perdas e sofrimentos no período.

Apesar das dores da guerra, a Bósnia e Herzegovina merece uma visita. A começar, o país montanhoso oferece ao viajante paisagens deslumbrantes, montanhas de um verde maravilhoso sulcadas por rios e lagos de tirar o fôlego. Tudo bem que as estradas não são lá essas coisas e o tráfego nelas é bastante intenso, o que faz que as viagens sejam demoradas. Mas vale a pena.

Sarajevo é uma cidade interessante e cheia de curiosidades. Fundada pelos turcos em meados do Século XV em torno de um caravançarai às margens do Rio Miljacka, logo virou entreposto comercial, fazendo da cidade uma das mais importantes da Península Balcânica nos séculos seguintes, permanecendo como a capital da Bósnia Otomana, até que em 1699 ela foi atacada pelos europeus.

Apesar de sua importância econômica e política, a cidade não se destaca pela beleza, ainda mais se o viajante pretende continuar seu trajeto chegando às belíssimas cidades do litoral do Adriático ou está vindo da capital da Eslovênia, como era o nosso caso. O fato de não ser bela, entretanto, não diminui seus atrativos.

A capital da Bósnia tem uma arquitetura e um plano urbano que mostram, muito bem, o encontro de dois grandes Impérios do passado, o Turco-Otomano e o Austro-Húgaro e permite, em um rápido passeio pelo centro histórico, provar desses dois mundos. Há, na verdade, uma linha que divide o centro da cidade entre a parte mais antiga, onde estão a primeira madrasa (faculdade) dos Bálcãs, as mesquitas, o mercado, a antiga sinagoga, além de outras atrações daquele período histórico; e, a outra parte, construída a partir do Século XIX, depois da chegada dos austríacos, cuja arquitetura se inspira na que encontramos na Inglaterra vitoriana, na Paris e na Viena do mesmo período, com seus bulevares com pequenos jardins, imponentes prédios, além de igrejas católicas e cristãs ortodoxas.

Os restaurantes e bares também evidenciam este encontro. Os mais tradicionais da parte mulçumana, que servem comidas “árabes”, como o Mrkva, onde o Pedro pediu um iogurte para acompanhar a refeição, pois não servem bebida alcóolica é um dos mais recomendados. Já na parte europeia, além de uma maior variedade de opções, com comida de igual qualidade, um Shiraz bósnio pode ser uma ótima companhia para o jantar, depois de um dia inteiro de passeios.

Há também as inúmeras referências e passeios relacionados com o conflito armado dos anos 90 que resultou em um cerco à capital do país que durou quase 1500 dias. O Túnel da Esperança, uma dessas atrações, foi construído por baixo do aeroporto da cidade – controlado por tropas da ONU para garantir a ajuda humanitária – que permitiu que a cidade continuasse sendo abastecida durante todo o conflito e, à duras penas, garantisse condições mínimas de sobrevivência à população sitiada.

Existem ainda: um museu relacionado ao assassinato do Arquiduque e a primeira guerra; memoriais e roteiros turísticos nos arredores da cidade onde se vê de onde os franco-atiradores atiravam nas pessoas que se aventuravam pelas ruas da cidade durante os meses do cerco; além de diversos outros monumentos que remetem a este dolorido período do país.

A Herzegovina, mais ao sul, não é tão verde nem tem uma natureza tão exuberante quanto a da Bósnia. Sendo uma região de transição entre os Alpes Dináricos e o mar Adriático, sua terra é mais árida e menos fértil, mas oferece ao viajante os belos contrates entre as pedras da montanha e o azul do mar daquela porção da Europa. A sua capital, a cidade de Mostar, que como o próprio nome sugere, tem uma ponte como principal atrativo, mas não só isso.

Assim como a ponte de Ivo Andric sobre o Drina, a Stari Most de Mostar foi construída por ordem de Solimão, o Magnífico em meados do Século XVI, e depois de 9 anos de trabalho foi concluída. Debruçada sobre o Rio Neretva, ligando os dois lados da cidade, a ponte foi totalmente destruída durante a guerra civil da Herzegovina no trágico dia 9 de novembro de 1993.

Graças aos esforços de vários governos e dos cidadãos do país, a ponte foi reconstruída e o centro histórico da cidade revitalizado, com toda a área tombada como Patrimônio da UNESCO em 2004. Hoje a ponte é a principal atração turística de Mostar e o pequeno centro histórico que fica no seu entorno, com estreitas vielas calçadas em pedra tosca, abriga um sem número de bares, restaurantes e lojas de artesanato e suvenires, que fazem a alegria dos visitantes. Assim, além de aproveitar o agradável clima do centrinho da cidade, os turistas podem realizar passeios de barco pelo rio e, outra atração toda própria de Mostar, patrocinar os jovens mergulhadores que saltam do alto dos seus 25 metros, direto nas frias águas do Neretva.

Para aqueles que curtem o turismo religioso, a cerca de uma hora de carro de Mostar está a cidade de Medugorje, local em que fiéis cristãos acreditam ter ocorrido aparições de Nossa Senhora. Assim como em Fátima, Portugal, ali foi construído um santuário em devoção à Santa. Assim como em Fátima, embora o santuário não esteja nem perto da dimensão e da suntuosidade do português, a cidade em si não vale a visita e também como sua congênere portuguesa, os restaurantes, lojas de souvenires e vendedores de enchem o entorno do santuário vivem do fluxo de pessoas que diariamente por ali passam.

A existência de um santuário Cristão, que atrai gente de todo o mundo, em um país onde metade da população professa o islamismo, os católicos são pouco mais de 10% dos residentes e a igreja ortodoxa Sérvia forma o segundo maior contingente religioso, evidencia o desafio que deve ser manter unidos sob uma mesma bandeira etnias, credos, paixões e interesses tão diversos.

Igualmente complicada é a organização político-administrativa do país. Sob esta bandeira estão unidas duas entidades consideradas politicamente autônomas (a República Sérvia da Bósnia e a Federação da Bósnia e Herzegoniva) e o distrito de Brcko, que é uma terceira entidade administrada na forma de um condomínio pelas outras duas!

Moleza de entender, mais fácil ainda de administrar. Só que não! A diversidade da Bósnia talvez seja sua maior riqueza e seu maior desafio, o que fez que minha viagem por aquelas bandas apenas confirmasse a atualidade do romance de Andric.

Passados quase 75 anos de quando A Ponte sobre o Drina foi publicado, a Bósnia e Herzegovina continua sendo um país marcado por disputas étnicas, políticas, culturais e religiosas que remontam ao início da ocupação muçulmana na região. Ao mesmo tempo, como acontecia no romance, uma vez superados os conflitos que eventualmente surgiam, estavam todos, novamente, construindo e reconstruindo suas pontes, construindo e reconstruindo suas vidas, construindo e reconstruindo seu País.

domingo, 4 de abril de 2021

Catarina, Governante da França.


Reputa-se a Mao Tsé Tung a afirmação de que “a política é uma guerra sem derramamento de sangue, e a guerra uma política com derramamento de sangue”, mas acredito que poucos viveram esta situação quanto Catarina de Medice. Isso, considerando a história narrada por Leonie Freida, no livro, Catarina de Medice, A Rainha que Mudou a França.

Oriunda da rica família que controlou Florença durante décadas, Catarina chegou à França em função de um arranjo político. O Rei daquele país tinha grandes interesses nas porções setentrionais da atual Itália, terras que também eram cobiçadas pelo Rei da Espanha e pelo Sacro Imperador, e para fortalecer os argumentos de suas pretensões territoriais achou por bem casar seu segundo filho com uma descendente da família da Toscana.

A jovem Catarina chegou à Corte Francesa ainda adolescente e, apesar da boa acolhida de seu sogro, logo se descobriu vítima de preconceitos, tanto por sua origem plebeia, como por ser italiana. Para piorar, o jovem príncipe com quem se casara nutria uma paixão, que manteria até sua morte, por uma mulher mais velha e mais experiente que ela, a viúva Diana de Poitier.

Como estratégia de sobrevivência Catarina se empenha em cair nas boas graças do sogro e, quando o Delfin, o herdeiro natural ao trono, falece, se vê ainda mais ameaçada pelas intrigas e disputas da Corte, agora que era potencial rainha da França. Até chegam a cogitar a anulação de seu casamento, pois sua família tinha caído em desgraça na politica florentina e vários anos tinham se passado e nada dela gerar herdeiros.

Mas Catarina não era facilmente derrotada. Tamanho seu empenho, que chegou a se esconder no quarto do marido para assisti-lo em plena ação com sua amada e entender o que eles dois estavam fazendo de errado. Se esta foi a razão ou não, o que se sabe é que depois da pesquisa, certamente muito dolorida, o casal real não parou mais de procriar, com Catarina dando ao seu amado Henrique II, dez filhos.

Catarina não tinha 40 anos quando, em um acidente em um torneio de Cavaleiros no pátio do Palácio, seu marido teve o olho trespassado por uma lança e a ferida, depois de infeccionar, acabou matando o Rei da França, deixando como sucessor seu adoentado filho mais velho, Francisco II, que na época contava com pouco mais de 15 anos.

É neste momento que Catarina sai das sombras. De imediato, expulsa da Corte a rival Poitier e seu grupo e, torna-se governante da França, reinando em nome de seu filho, se equilibrando entre os interesses das duas principais famílias da Corte: os Burbons, primos dos Valois, príncipes de sangue; e os Guise, nobres menores, mas com uma ambição e um apetite que, por meio de casamentos e arranjos, procuravam ampliar seus poderes e fortunas, ameaçando a continuidade da Casa de Valois.

A saúde frágil dos filhos fez com que Catarina tivesse não apenas um filho rei da França, mas três. Em sucessão, Francisco II, Carlos IX e Henrique III reinaram sobre a França, tendo a mãe como a principal conselheira e, no mais das vezes como a governante de fato.

Com sua habilidade política, em uma época que os partidos se contavam em função do número de soldados e armas que conseguiam arregimentar, Catarina assistiu sua amada França se dividir entre católicos e protestante, em uma sucessão de guerras religiosas que praticamente destruíram o país.

Os governos de Catarina, comandando a política do país entre um filho e outro, de palácio em palácio, nos levam por viagens por uma das regiões mais bonitas da França: o Vale do Loire. Pois era por aquelas paisagens que a Rainha e sua Corte passavam boa parte dos seus dias.

Nas vésperas de comemorar os 70 anos de meu pai, que foi festejado em Vichy, fizemos um maravilhoso passeio pelo Loire, partindo de Chartes em direção a Poitier, terra da rival de Catarina. A cidade, onde minha irmã estava morando por conta do mestrado, tem um centro histórico bonitinho e acolhedor. Com ruas pavimentadas em calçamentos de pedras bem polidas, igrejas góticas e romanas, o prédio da prefeitura no centro da praça, tendo à sua volta uma dúzia de lojinhas, restaurantes e bares nos arredores, servindo de excelente ponto para uma pausa na viagem.

Mas o ponto alto do passeio no Loire, que deve ser feito de carro e sem se preocupar com mapas, são os maravilhosos castelos que acompanham o curso do famoso rio. Blois, Amboise, Tours, possuem belos castelos e palácios que, durante o período de Catarina, foram testemunhas de encontros, Estados Gerais, conspirações, cercos e das intrigas que movimentaram a politica francesa do Século XVI.

Dentre eles e imperdível para o viajante está o Castelo de Chennonceau. Orginalmente o castelo era de propriedade de Diana de Poitier, um presente do apaixonado Henrique II. Quando o rei morreu e sua amante foi expulsa da Corte, Catarina tomou para si o castelo. Reformou-o, ampliou-o, construiu o maravilhoso salão de festas que se estende por toda a extensão da ponte que une das duas margens do Rio Cher, com suas impressionantes janelas e seu piso em mármores pretos e brancos.

Os aposentos da rainha também estão preservados, mas o observador atento não deixará de notar, provavelmente para desgosto de Catarina, que aqui e ali ainda se encontra a insígnia adotada pelo falecido marido durante o seu reinado, representando um H e um D entrelaçados, não permitindo Catarina apagar o amor que seu falecido nutria pela viúva de Poitier.

Em Blois o magnifico castelo abriga um interior bonito e suntuoso, valendo a pena visitar os aposentos da nossa heroína. Relativamente perto dali, está o impressionante castelo de Chambord, cuja escadaria helicoidal foi desenhada pelo próprio Da Vinci. O castelo foi construído por Francisco I, sogro de Catarina, para funcionar como seu pavilhão de caça, sendo pouco utilizado pela corte. A obra só foi concluída anos depois por Luis XIV, que o utilizou com maior frequência.

Há também os espetaculares jardins do Chateau de Villandry. O castelo em si não é lá essas coisas, mas os jardins são impressionantes e, se o dia estiver bonito, merece uma tarde inteira para aproveitar o ar puro e apreciar suas belas formas geométricas coloridas, formadas por centenas de flores e árvores.

Em Amboise, além do palácio debruçado sobre o Loire, alvo de sucessivas reformas que lhe deram uma arquitetura variada e eclética, aprende-se que o grande Leonardo da Vinci viveu ali seus últimos anos e que a curta distância de caminhada existe um interessante museu, com a reprodução dos diversos inventos e inovações pensadas pelo gênio da renascença.

É também esta cidade que dá nome a um dos eventos que marcam o início das hostilidades entre católicos e protestantes no período de Catarina. A chamada Conjuração de Amboise, uma tentativa de golpe, comandada pelos huguenotes para sequestrar Francisco II do controle dos Guise.

Entre os nomes que ainda tentavam manter o diálogo, o Almirante Coligny, vai despontando como o mais importante líder militar da facção protestante. Respeitado e temido por Catarina, querido pelo Rei, o Almirante foi, durante algum tempo, um dos principais mediadores dos muitos dos acordos, tratados e éditos patrocinados por Catarina na tentativa de apaziguar a tensão entre os dois partidos. Amante dos acordos, entretanto, ela não hesitaria em usar a força.

Isto porque, se o diálogo e os casamentos arranjados sempre foram prioridade na política de Catarina, ela nunca deixou de entender, como bem disse o líder comunista chinês, que política e guerra eram dois lados de uma mesma moeda. Assim, anos depois, sentindo que o recrudescimento do movimento protestante poderia ameaçar o trono de seus filhos, ela decide assassinar os principais líderes oposicionistas num evento que, para sempre, iria manchar seu nome na história.

Era 24 de agosto e, em mais uma tentativa de conciliar os interesses de católicos e protestantes, Cataria arranjou o casamento entre sua filha Margot e seu primo, o protestante Henrique II de Navarra, que por sua condição de potencial herdeiro ao trono francês, no caso da dinastia Valois não deixar sucessor, tinha importante papel de liderança no movimento religioso que abalava a nação.

Apesar da enorme desconfiança, milhares de protestantes se descolocaram a Paris, principal centro do conservadorismo católico, para as festividades. Temendo a força política e militar de Coligny, sem o conhecimento do Rei Carlos IX, Catarina ordenou o seu assassinato. Depois de uma primeira tentativa fracassada, que a obrigou expor ao filho o plano, centenas de católicos liderados pelo Duque de Guise, invadiram o palácio onde o almirante convalescia e o assassinaram, atirando o pobre homem pela janela e introduzindo no vocabulário mundial a palavra defenestrar (fenêtre é janela em Francês).

 O assassinato do principal líder militar dos huguenotes despertou a fúria dos católicos parisiense e nas horas e dias que se seguiram à Noite de São Bartolomeu, milhares de protestantes foram assassinados, não apenas na capital francesa, mas em diversas cidades do país. Catarina iria, para todo o sempre, carregar a responsabilidade por este massacre.

Por outro lado, foi este movimento que a manteve no controle da política francesa, garantiu que quando seu segundo filho-rei morreu, a sucessão de Henrique III estivesse assegurada e que ela continuasse como a principal força da Corte até perto da sua morte, em janeiro de 1589.

Depois de quase 30 anos como governante de França, a morte, aos 70 anos de idade, poupou Catarina de saber que seu favorito, Henrique III, seria assassinado, poucos meses depois, não deixando sucessor. O huguenote Henrique II de Navarra, seu genro, casado com a Rainha Margot, iria sucedê-lo como Henrique IV e a casa Bourbon iria reinar a França por mais 200 anos, até que os ventos da Revolução Francesa iriam levar seus descendentes para a Guilhotina.

domingo, 14 de fevereiro de 2021

Às Margens do Lago Michigan








Quem acompanha as eleições presidenciais americanas tenta decifrar este longo processo e complicado processo que envolve as primárias partidárias, as convenções e um processo eleitoral diferente do nosso em que democratas e republicanos disputam os votos dos estados em um colégio eleitoral, numa disputa que eventualmente pode eleger o candidato que recebeu menos votos populares.

Também fica sabendo da importância que alguns estados têm para a disputa seja por terem muitos delegados – como a Califórnia – seja por serem o fiel da balança quando as eleições são mais disputadas, como o caso de Ohio, a Flórida e, mais recentemente, a Geórgia. Mas nem sempre foi assim.

É o que nos conta James Chace no muito interessante livro 1912, Wilson, Roosevelt, Taft and Debs, the election that changed the Country (não achei versão em português), que como fica claro, trata da sucessão presidencial americana há mais de um século atrás, portanto antes da primeira guerra mundial e antes da limitação de no máximo uma reeleição a que os atuais presidentes se submetem.

Depois de exercer seu mandato como presidente até 1908, Theodore Roosevelt (não confundir com o da Segunda Grande Guerra, que era sobrinho dele) resolve apoiar a eleição de Wiliam Howard Taft, seu colega de partido e homem de confiança no Governo para sucedê-lo.

Em uma eleição sem maiores surpresas já que havia mais de 20 anos que um republicano não perdia uma eleição presidencial para os democratas, Taft ganha o pleito, assume o seu mandato, enquanto Roosevelt com seu espírito aventureiro vai explorar as florestas da África.

Entretanto, como costuma acontecer nas relações de sucessão, na medida em que Taft começa a imprimir sua marca na administração federal, os amigos e aliados do ex-presidente começam a se sentir incomodados e passam a estimular o seu retorno à cena política. Inicialmente Roosevelt resiste à ideia, mas aos poucos vai sendo convencido e se convencendo de que ele é “o cara” e que seu agora ex-amigo deveria abrir mão da candidatura reeleição e apoia-lo no pleito de 1912.

Claro que paralelamente a esta movimentação outros partidos e outros candidatos começam também suas movimentações, ainda que num primeiro momento sem grandes expectativas já que os republicanos mantinham essa serie histórica vitoriosa. Da parte dos Democratas, o governador do estado de Nova Jersey, Woodrow Wilson, começa a se organizar e a buscar dentro do seu partido os apoios necessários para sua candidatura, enquanto o partido socialista, bafejado pelos movimentos operários e o fortalecimento dos sindicatos se acha no auge político dentro dos Estados Unidos e se organiza em torno da candidatura de Eugene Debs.

O cenário para um grande racha dentro do Partido Republicano esta armado e o palco para o desfecho foi a cidade de Chicago, as margens do Lago Michigan.

A cidade dos ventos (Windy City) é a mais populosa do Estado de Illinois (terceira do País) com cerca de 2,7 milhões de habitantes e é uma cidade relativamente nova, já que só adquiriu esse status em 1837, depois que o governo americano expulsou os índios que viviam ali nas imediações do Rio Checagou (como chamavam os franceses) e apoiou o povoado que na época contava com cerca de 4 mil habitantes.

A partir daí Chicago se expandiu como centro de logística – na terminologia de hoje – uma vez que ao associar a navegação dos Grandes Lagos, com canais construídos interligando-os, e as estradas de ferro que dali partiam converteu-se em hub do desenvolvimento para todo o meio oeste americano, especialmente na sua porção mais ao norte, processo que chega ao seu auge durante a Guerra da Secessão Americana quando a cidade vira um dos principais polos de sustentação ao exército da União.

Em 1871 a cidade sofreu enorme abalo por conta do Grande Incêndio que devastou todas as ruas de sua área central e deixou de pé apenas a Chicago Water Tower (antiga caixa d´água da cidade), que hoje ainda podem ser visitados como testemunho do desastre e da capacidade de se reerguer dos seus cidadãos.

Hoje a cidade é uma das principais metrópoles americanas com muitas de suas principais atrações aparecendo nos filmes que são produzidos nas suas ruas: quem não se lembra da maravilhosa cena de “Os Intocáveis” em que o Elliot Ness tenta salvar a criança no carrinho de bebê que desce perigosamente as escadarias da Chicago Union Station enquanto troca tiros com os gansters de Al Capone ou das muitas imagens da famosa Sears Tower (hoje Willis Tower) que por muitos anos foi o prédio mais alto do mundo?

Estive por duas ocasiões em Chicago: na primeira vez, durante o inverno, junto com minha família, os filhos ainda pequenos, para visitar meu irmão e passar o Natal. Devo reconhecer que pouco aproveitei da cidade, fazia um frio medonho e a neve cobria toda a cidade, nos obrigando a correr de lugar fechado em lugar fechado. Divertido mesmo era, todo o dia pela manha, tirar a neve que cobria os carros a ponto de não conseguirmos reconhecer qual era o nosso e qual o dos vizinhos. Mas mesmo assim, foi divertido, especialmente porque era a primeira vez que os meninos viam neve em tanta quantidade.

Na segunda vez o clima era, literalmente, outro. Estava em viagem a trabalho e chegamos em plena primavera. Os dias ainda eram longos e pegamos dias de temperatura muito amena. Aí sim foi possível apreciar a beleza da cidade: em um passeio de barco ao longo do Chicago River, que parece um cânion formado por arranha-céus, apreciando a famosa arquitetura da cidade; na visita ao Navy Pier para tomar uma bud ou numa inevitável esticada nas lojas, bares e restaurantes da Magnificent Mile; ou ainda, nos passeios pelo Millenium Park, na visita ao Soldier Field ou por qualquer dos muitos parques que ficam naquela região.

Nesses dias primaveris era possível provar todos os sabores da cidade, com uma animada vida cultural, boa parte dela acontecendo gratuitamente nos vários espaços públicos existentes e apreciar as pessoas, especialmente os jovens, que se divertiam às margens do Lago Michigan em seus parques e praias lacustres.

Na minha imaginação, o agradável clima e a tranquilidade política que reinava da cidade, depois da reeleição de Barack Obama, contrastava com o calorento verão de 1912 quando aconteceu a famosa convenção republicana que, segundo James Chace, iria transformar para sempre a politica norte americana.

Já nos dias que antecederam o evento, os panfletos anunciavam que às três da tarde da quinta feira seguinte Theodore Roosevelt “andaria sobre as águas do Lago Michigan” se preparando para apresentar sua candidatura de oposição à do Presidente Taft, em clima de beligerância.

Analistas políticos previam que a convenção de Chicago seria uma combinação do Grande Incêndio, com o massacre da Noite de São Bartolomeu, a batalha de Boyne, a vida de Jesse James e a noite dos grandes ventos. Um cataclismo que anunciado para os republicanos e para a política nacional.

Apesar de gozar do apoio popular e da preferência do eleitorado republicano, o controle da máquina partidária falou mais alto e Ted Roosevelt acabou sendo derrotado. Em meio a denúncias de corrupção e manipulação da convenção, o derrotado não aceita o resultado, abandona o Partido Republicano e é aclamado candidato a Presidente na convenção do, até então, inexpressivo Partido Progressista, que também acontecia em Chicago!

O livro de Chace é muito gostoso de ler, especialmente para aqueles que, como eu, militam ou se interessam por politica. O texto, além de acessível, traz informações e análises que permitem ao leitor compreender as características da política americana no primeiro quartel do século passado e entender como o caráter dos políticos, suas idiossincrasias, podem ser decisivas em momentos de transformação histórica.

Todos conhecem o resultado das eleições de 1912: Wilson 42%, Roosevelt 28%, Taft 22% e Debs cerca de 6%. Depois de décadas fora do poder, a divisão entre republicanos e progressistas, somados à surpreendente votação dos socialistas (quase 1 milhão de votos, mais que o dobro de 4 anos antes, a maior votação de um socialista nos Estados Unidos até os dias de hoje!!!), garantiram a vitória dos democratas e colocaram Wilson na presidência da República.

Os ventos que sopraram às margens do Lago Michigan em 1912 acabaram o domínio político do Partido Republicano nas eleições presidenciais americanas e desde então os dois partidos passaram a se revezar no poder, com os republicanos elegendo Hoover, Eisenhower, Ronald Reagan, Trump e os Bush e os democratas elegendo nomes como FDR, Kennedy, Bill Clinton, Barak Obama e Joe Biden.

Como o livro é de 2004 o autor talvez nem imaginasse que os ventos de Chicago haviam transformado tão radicalmente a política americana que em 2008 o povo daquele país iria eleger pela primeira vez um presidente afro-americano, do Partido Democrata, que fez carreira política na cidade de Chicago e se notabilizou como Senador da República pelo Estado de Illinois: Obama.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

América Dividida


O mundo inteiro assistiu, estarrecido, à malograda tentativa de alguns partidários do Presidente Trump de invadir o prédio do Capitólio, em Washington, para tentar evitar a homologação da eleição de Joe Biden como o 46º presidente norte americano.

Insuflados pelo discurso presidencial, cheio de sugestivas insinuações quanto à ilegalidade do processo eleitoral em que foi derrotado, os partidários de Trump marcharam pela Pennsylvania Avenue em direção à sede do parlamento onde, depois de atos de vandalismo e violência generalizada, foram expulsos, sem conseguir seus objetivos e deixando para trás quatro mortos.

A inusitada condução da sucessão presidencial contrasta, em tudo, com o clima de respeito e com o ambiente pacífico que quase sempre marcaram a vida na capital norte americana.

Em abril de 2019 ali estive para participar de um evento promovido pelo Banco Mundial para apresentar a bem sucedida experiência de gestão do saneamento rural patrocinada pelo Governo do Estado do Ceará e pela CAGECE, o SISAR.

Como cheguei na cidade na noite do sábado que antecedia à abertura do evento, depois de um longo voo com conexões em São Paulo e no Panamá, aproveitei o domingo livre para turistar em suas áreas centrais. Havia muito tempo desde a última vez que ali estivera e, aproveitando o lindo dia que fazia, fui rever a Washington monumental.

Embora fosse uma boa caminhada, como era um domingo livre, decidi ir do meu hotel em Georgetown até a Casa Branca caminhando. Apesar do sol e de praticamente nenhuma nuvem no céu, o dia estava agradável e corria um vento frio que vinha do Potomac o que me obrigava a evitar os locais mais sombreados.

Depois de passear pelas belas ruas do bairro, com suas casinhas coloridas, atravessei a ponte em direção à Pennsylvania Avenue e de lá alcancei a Casa Branca pela Praça Lafayette, onde alguns gatos pingados protestavam contra o governo sobre temas variados sob o olhar vigilante dos policiais que guardavam aquela parte da residência presidencial.

Depois de acompanhar o movimento e tentar tirar algumas boas fotos do local, contornei o prédio da residência presidencial, atravessei a elipse e cheguei ao obelisco que homenageia George Washington.

O mês de abril é o período em que as cerejeiras florescem e, naquele ano, as inúmeras cerejeiras que ornamentam as calçadas e ruas que ligam os quase 4 km que separam o Capitólio ao Lincoln Memorial, produziam um espetáculo à parte, contrastando o rosa de suas flores com o azul irretocável do céu.

As primeiras cerejeiras chegaram à capital americana como um presente do governo japonês, depois da Segunda Guerra, e nas imediações do Lincoln Memorial há um jardim japonês e uma referência à data em que as primeiras árvores chegaram em solo americano.

Era domingo, mas os monumentos não estavam muito cheios e, consequentemente, o passeio rendeu. Optei por começa-lo tomando à esquerda e pegar o rumo do prédio que abriga as duas casas legislativas americanas. No caminho, aproveitei para apreciar a arquitetura dos prédios do Smithsonian e entrei no Castelo de tijolos vermelhos, onde fiz uma rápida pausa da caminhada e um lanche rápido.

De lá, como colecionador de moedas, fiz uma visita ao Bureau of Engraving and Printing para atualizar a coleção de quarters americanos e segui para os memoriais em homenagem a Jefferson, Lincoln, Luther King, Roosevelt e aos milhares de americanos que deram sua vida nos muitos conflitos armados que aquele país se envolveu.

Não há como fazer este circuito e não se impressionar com o respeito com que os americanos tratam suas instituições, sua história e seus heróis, conhecidos e desconhecidos. O que faz com que os eventos de janeiro de 2021 sejam ainda mais surpreendentes.

Como se aproximava o fim do dia, tomei o caminho de volta a Georgetown pois tinha combinado com alguns companheiros do evento do Banco Mundial de tomar um vinho em um bar às margens do Potomac, curtindo uma boa música e apreciando o por de sol, que naquela tarde foi espetacular.

No trajeto, nas proximidades do hotel, parei em uma pequena livraria e por menos de 10 dólares comprei um livro que tratava de um dos personagens homenageados nos monumentos e até hoje reverenciado por sua decisiva participação na Independência dos EUA: Thomas Jefferson.

Friends Divided, de autoria do ganhador do Prêmio Pulitzer Gordon S. Wood, é uma dupla biografia, tendo como eixo orientador a fundação da República Norte Americana e as relações pessoais e políticas de dois dos principais “Fouding Fathers”: Jefferson e John Adams.

Enquanto Jefferson ganhou notoriedade como o autor da Declaração de Independência assinada em 4 de julho de 1776, Adams foi quem concebeu as principais instituições da nascente república democrática e orientou a redação da  maior parte das constituições das províncias que se transformavam em estados.

Oriundos de experiências de vida muito distintas - enquanto Adams era um advogado de famílias pobre no Norte, Jefferson era rico proprietário de terras e de escravos no Sul - os dois se tornaram amigos durante as temporadas passadas na Filadélfia, construindo a nova nação, enquanto Washington combatia os ingleses nas Guerras da Independência.

As divergências políticas que nasceram neste processo levaram ao afastamento dos amigos, justificando o título do livro de Wood e evidenciando como a nação americana fora resultado, desde o nascedouro, da possibilidade que antagonistas no pensamento e adversários na política fossem capazes de construir a nação que, 200 anos depois, seria a principal potência mundial.

O respeito mútuo e a moderação, que normalmente a velhice é capaz de trazer, fez com que ao final da vida, Adams e Jefferson se reconciliassem e voltassem a se corresponder como bons e velhos amigos, isto depois de terem sido o segundo e o terceiro presidentes dos EUA.

Lembrando os ensinamentos do livro de Wood e voltando à Washington do Século XXI, é impossível não nos perguntarmos qual foi o momento em que os EUA e, a meu ver, quase todo o mundo, perdeu a crença no diálogo, no entendimento e na capacidade das instituições democráticas de nos ajudar a construir um mundo melhor, onde a busca da felicidade seja direito inalienável de todos.