domingo, 27 de junho de 2021

Pontes Sobre a Bósnia.

 


 


Most significa ponte em vários idiomas dos países centrais europeus. Em esloveno, eslovaco, sérvio, croata ou bósnio, a “obra d´arte” que une as margens de um rio leva este nome. Na linguagem figurada, a construção de pontes ou a sua travessia estão sempre associadas à união entre partes, à junção de diferenças ou à superação de obstáculos. 

Em mais de uma ocasião, neste blog, às pontes recorri para dar materialidade a sentimentos e percepções em minhas viagens literárias mas em nenhuma das ocasiões esta figura de linguagem se adequasse tão bem quanto à Bósnia e Herzegovina.

Em setembro de 2019, antes que a COVID nos obrigasse a uma indesejada pausa nas minhas excursões pelo mundo, estive na Bósnia, como parte de uma viagem por vários países nascidos da dissolução da antiga Iugoslávia, embora antes disto, por conta dos livros, já desejasse conhecer o país. Seu passado de conflitos e sua posição de passagem entre duas culturas me atraíram desde as primeiras páginas do livro “A Ponte sobre o Drina”.

A Ponte sobre o Drina é um desses casos em que a vontade de ler, acima de qualquer restrição, revela quão grande pode ser a nossa ignorância sobre as coisas do mundo. Comprei o livro em um sebo das ruas de Lisboa, desses que os títulos são vendidos por 3 euros, para ir lendo quando a oportunidade surgisse. Nunca tinha ouvido falar no livro nem em seu autor, o croata católico nascido na Bósnia, Ivo Andric. Só depois de terminada a leitura, descobri que seu autor tinha recebido o Nobel de Literatura em 1961 e que A Ponte é uma de suas principais obras.

O livro, que tem como personagem principal a ponte que lhe dá nome, começa com a história de uma criança cristã, que em 1516 é sequestrada pelos Turcos para ser educado na Corte Otomana, como paga de sangue para o Sultão. Sua pobre mãe tenta, em vão, seguir os sequestradores para recuperar o filho. Mas na travessia do Drina, ela fica para trás e dá por perdido o pequeno rebento.

Os anos passam e o jovem, agora totalmente adaptado à cultura otomana se transforma no Grão Vizir Mehkmedpaxá Sokollu e, talvez em homenagem à sua mãe, talvez por questões da geopolítica da época, faz construir uma ponte sobre o rio Drina, na sua cidade natal de Víchegard, exatamente onde sua mãe um dia o viu partir para sempre.

A ponte é transformada em protagonista de um romance que trata da simples vida cotidiana daquela pequena cidade, contando 300 anos da história daquele pedaço de mundo, de um lugar onde o oriente e o ocidente se encontram. Onde cristãos e muçulmanos se juntam e se separam. Onde Europa e Ásia negociam, confabulam e guerreiam.

A velha ponte só perde sua importância e acaba destruída com a expansão das ferrovias e com o advento da Primeira Grande Guerra. Ainda assim, no universo  ponte, microcosmo da atual Bósnia e Herzegovina, a ponte sobre o Drina é substituída por outra, esta em Sarajevo, personagem icônica de um dos principais momentos da história ocidental do Século XX: a Ponte Latina.

Foi nas suas imediações, no centro da capital bósnia, que o Arquiduque do Império Austro-Húngaro, Franz Ferdinand, foi assassinado por um ativista sérvio, o que serviu de estopim para a primeira guerra mundial. O próprio Andric, que com seus 22 anos militava no movimento nacionalista Mlada Bosna chegou a ser preso como suspeito de ter participado da trama e começou a escrever seus primeiros poemas durante a temporada em que sofreu suas agruras na prisão de Maribor.

Quando somadas: a história do Drina; o assassinato do arquiduque na Ponte Latina; e, as trágicas cenas da guerra de Sarajevo que, impressionados, muitos de nós pudemos acompanhar durante os longos meses que durou aquele conflito em meados dos anos noventa, a viagem àquele país não tinha como não ser instigante, como de fato foi.

A Bósnia é, hoje, aos olhos dos que viajam para aquelas bandas, a prima pobre da Croácia. Um país que há cerca de 30 anos estava sendo dilacerado por um terrível conflito étnico, que chocou o mundo por sua barbárie e sua violência, vem aos poucos tentando se recompor dos traumas vividos. Irmãos, famílias, vizinhos que até outro dia estiveram lado a lado, nas escolas, nos trabalhos ou no convívio social cotidiano, repentinamente estavam armados e em campos opostos da batalha. Ou melhor, das batalhas. Já que eles mesmos entendem que a guerra de Sarajevo, na Bósnia, foi uma, enquanto que a de Mostar, na Herzegovina, foi outra.

Na primeira, Bósnios Mulçumanos (Bosniacs) se uniram a Croatas e até alguns Sérvios cristãos, contra aqueles Sérvios que formaram a República Sérvia na Bósnia, que até hoje existe. Na segunda, a população croata da Herzegovina, que é majoritária, queria se juntar à nova Croácia, enquanto os Sérvios à Sérvia e os Bósnios à Bósnia, fazendo uma guerra de três lados que, a depender da conveniência, se aliavam ou se matavam.

Em suma, um espetáculo macabro que, ainda hoje, deixa viva as feridas do período: nas ruas marcadas pelos morteiros, nos prédios ainda crivados de projéteis, nas “atrações turísticas”, na organização política e administrativa do país e, principalmente, nas vidas das pessoas comuns que vivem com suas perdas e suas dores ainda tão próximas. A nossa jovem guia do walking tour pelas ruas de Sarajevo tinha cerca de 20 anos e seus pais, que tinham quase a mesma idade dela quando a guerra começou, participaram do movimento de resistência da população de Sarajevo nos mais de dois anos de cerco à cidade e sofreram incontáveis perdas e sofrimentos no período.

Apesar das dores da guerra, a Bósnia e Herzegovina merece uma visita. A começar, o país montanhoso oferece ao viajante paisagens deslumbrantes, montanhas de um verde maravilhoso sulcadas por rios e lagos de tirar o fôlego. Tudo bem que as estradas não são lá essas coisas e o tráfego nelas é bastante intenso, o que faz que as viagens sejam demoradas. Mas vale a pena.

Sarajevo é uma cidade interessante e cheia de curiosidades. Fundada pelos turcos em meados do Século XV em torno de um caravançarai às margens do Rio Miljacka, logo virou entreposto comercial, fazendo da cidade uma das mais importantes da Península Balcânica nos séculos seguintes, permanecendo como a capital da Bósnia Otomana, até que em 1699 ela foi atacada pelos europeus.

Apesar de sua importância econômica e política, a cidade não se destaca pela beleza, ainda mais se o viajante pretende continuar seu trajeto chegando às belíssimas cidades do litoral do Adriático ou está vindo da capital da Eslovênia, como era o nosso caso. O fato de não ser bela, entretanto, não diminui seus atrativos.

A capital da Bósnia tem uma arquitetura e um plano urbano que mostram, muito bem, o encontro de dois grandes Impérios do passado, o Turco-Otomano e o Austro-Húgaro e permite, em um rápido passeio pelo centro histórico, provar desses dois mundos. Há, na verdade, uma linha que divide o centro da cidade entre a parte mais antiga, onde estão a primeira madrasa (faculdade) dos Bálcãs, as mesquitas, o mercado, a antiga sinagoga, além de outras atrações daquele período histórico; e, a outra parte, construída a partir do Século XIX, depois da chegada dos austríacos, cuja arquitetura se inspira na que encontramos na Inglaterra vitoriana, na Paris e na Viena do mesmo período, com seus bulevares com pequenos jardins, imponentes prédios, além de igrejas católicas e cristãs ortodoxas.

Os restaurantes e bares também evidenciam este encontro. Os mais tradicionais da parte mulçumana, que servem comidas “árabes”, como o Mrkva, onde o Pedro pediu um iogurte para acompanhar a refeição, pois não servem bebida alcóolica é um dos mais recomendados. Já na parte europeia, além de uma maior variedade de opções, com comida de igual qualidade, um Shiraz bósnio pode ser uma ótima companhia para o jantar, depois de um dia inteiro de passeios.

Há também as inúmeras referências e passeios relacionados com o conflito armado dos anos 90 que resultou em um cerco à capital do país que durou quase 1500 dias. O Túnel da Esperança, uma dessas atrações, foi construído por baixo do aeroporto da cidade – controlado por tropas da ONU para garantir a ajuda humanitária – que permitiu que a cidade continuasse sendo abastecida durante todo o conflito e, à duras penas, garantisse condições mínimas de sobrevivência à população sitiada.

Existem ainda: um museu relacionado ao assassinato do Arquiduque e a primeira guerra; memoriais e roteiros turísticos nos arredores da cidade onde se vê de onde os franco-atiradores atiravam nas pessoas que se aventuravam pelas ruas da cidade durante os meses do cerco; além de diversos outros monumentos que remetem a este dolorido período do país.

A Herzegovina, mais ao sul, não é tão verde nem tem uma natureza tão exuberante quanto a da Bósnia. Sendo uma região de transição entre os Alpes Dináricos e o mar Adriático, sua terra é mais árida e menos fértil, mas oferece ao viajante os belos contrates entre as pedras da montanha e o azul do mar daquela porção da Europa. A sua capital, a cidade de Mostar, que como o próprio nome sugere, tem uma ponte como principal atrativo, mas não só isso.

Assim como a ponte de Ivo Andric sobre o Drina, a Stari Most de Mostar foi construída por ordem de Solimão, o Magnífico em meados do Século XVI, e depois de 9 anos de trabalho foi concluída. Debruçada sobre o Rio Neretva, ligando os dois lados da cidade, a ponte foi totalmente destruída durante a guerra civil da Herzegovina no trágico dia 9 de novembro de 1993.

Graças aos esforços de vários governos e dos cidadãos do país, a ponte foi reconstruída e o centro histórico da cidade revitalizado, com toda a área tombada como Patrimônio da UNESCO em 2004. Hoje a ponte é a principal atração turística de Mostar e o pequeno centro histórico que fica no seu entorno, com estreitas vielas calçadas em pedra tosca, abriga um sem número de bares, restaurantes e lojas de artesanato e suvenires, que fazem a alegria dos visitantes. Assim, além de aproveitar o agradável clima do centrinho da cidade, os turistas podem realizar passeios de barco pelo rio e, outra atração toda própria de Mostar, patrocinar os jovens mergulhadores que saltam do alto dos seus 25 metros, direto nas frias águas do Neretva.

Para aqueles que curtem o turismo religioso, a cerca de uma hora de carro de Mostar está a cidade de Medugorje, local em que fiéis cristãos acreditam ter ocorrido aparições de Nossa Senhora. Assim como em Fátima, Portugal, ali foi construído um santuário em devoção à Santa. Assim como em Fátima, embora o santuário não esteja nem perto da dimensão e da suntuosidade do português, a cidade em si não vale a visita e também como sua congênere portuguesa, os restaurantes, lojas de souvenires e vendedores de enchem o entorno do santuário vivem do fluxo de pessoas que diariamente por ali passam.

A existência de um santuário Cristão, que atrai gente de todo o mundo, em um país onde metade da população professa o islamismo, os católicos são pouco mais de 10% dos residentes e a igreja ortodoxa Sérvia forma o segundo maior contingente religioso, evidencia o desafio que deve ser manter unidos sob uma mesma bandeira etnias, credos, paixões e interesses tão diversos.

Igualmente complicada é a organização político-administrativa do país. Sob esta bandeira estão unidas duas entidades consideradas politicamente autônomas (a República Sérvia da Bósnia e a Federação da Bósnia e Herzegoniva) e o distrito de Brcko, que é uma terceira entidade administrada na forma de um condomínio pelas outras duas!

Moleza de entender, mais fácil ainda de administrar. Só que não! A diversidade da Bósnia talvez seja sua maior riqueza e seu maior desafio, o que fez que minha viagem por aquelas bandas apenas confirmasse a atualidade do romance de Andric.

Passados quase 75 anos de quando A Ponte sobre o Drina foi publicado, a Bósnia e Herzegovina continua sendo um país marcado por disputas étnicas, políticas, culturais e religiosas que remontam ao início da ocupação muçulmana na região. Ao mesmo tempo, como acontecia no romance, uma vez superados os conflitos que eventualmente surgiam, estavam todos, novamente, construindo e reconstruindo suas pontes, construindo e reconstruindo suas vidas, construindo e reconstruindo seu País.

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