Outro dia estava no Fortim, aqui no Ceará, na casa do meu amigo Dr. William curtindo a maravilhosa vista da foz do Rio Jaguaribe e conversando sobre política, quando me deparei com um livro do Hobsbawm de sua biblioteca. Como gosto do autor, não me contive e acabei tomando o volume emprestado.
Ao contrário do que pensei, o historiador Eric Hobsbawm não é o autor do livro A Invenção das Tradições, mas o organizador de uma coletânea de artigos produzidos por vários historiadores discutindo hipóteses de como se formam as tradições e, conforme ele explica, como muitas daquelas que acreditamos serem ancestrais são recentes e criações da própria modernidade. Já o primeiro artigo, A invenção das tradições: a tradição das Terras Altas da Escócia, de Hugh Trevor-Roper trata, me fez lembrar a viagem que fiz para aquelas bandas.
Em
um dia que amanheceu frio e chuvoso saímos de Glasgow com destino à cidade de
Inverness, capital das terras altas e cidade mais ao norte da Grã-Bretanha. A
viagem certamente teria sido melhor apreciada se o dia estivesse ensolarado e
luminoso, mas mesmo debaixo de nuvens cinzas e uma chuva renitente pudemos
apreciar a beleza das Lowlands e a transição para a porção mais alta e mais ao norte do Pais.
Ali
as paisagens se transformam, o verde exuberante se converte em uma cobertura
rala e marrom e o cenário parnasiano dos arredores de Glasgow e Edimburgo dá
lugar a uma paisagem mais hostil e selvagem. Nem por isso o contraste entre as
montanhas, as rochas imponentes, os riachos pedregosos e a vegetação da tundra
deixam impressionar pela beleza. É uma terra de horizontes vastos e grandes
vazios. Inóspita ao primeiro olhar, mas que aos poucos vai revelando suas
belezas e suas facetas mais agradáveis.
Chegando
ao nosso destino não podíamos deixar de visitar, imediatamente, a principal
atração daquelas paragens – pelo menos para nós estrangeiros – o famoso Loch
Ness. O lago, com mais de 35 quilômetros de extensão, é de uma beleza impar e o
contraste de suas águas escuras e profundas com as montanhas e pastagens do seu
entorno fazem valer sua fama internacional.
Mas
em um dia com ventos de um frio cortante, chuvas eventuais e pouco sol, nem
mesmo o famoso monstro do lago ousou sair de sua caverna e não deu o ar da
graça. Mas certeza que ele estava por lá nos vigiando!
Não
tendo sucesso na observação da personagem mais famosa da região, retornamos
para a capital das Terras Altas. Inverness é uma cidade pequena (70 mil habitantes) e sem grandes
atrativos, além do Lago e dos velhos castelos às suas margens. Ainda assim, caminhamos pelas ruas centrais da cidade e subimos para conhecer o
seu castelo, que ainda tem uso administrativo atualmente e é um local de onde se tem uma bela vista da cidade espalhada ao longo
do Rio Ness. Nada que justificasse as quase 3 horas de viagem, mas ainda assim,
bonitinha.
Convencidos
pela praticidade do Vicente e da Marília acabamos almoçando no McDonalds
(!!!!!!), franquia americana que globalizou o nome de um dos mais tradicionais
clãs escoceses, os MacDonalds, que dominaram o oeste da Escócia e o norte da
Irlanda no final da Idade Média, antes de virarem sinônimo de fastfood.
Os
tradicionais MacDonalds, segundo Trevor-Roper, jamais usaram os famosos kilts e
as gaitas de fole que tão marcantemente associamos à Escócia e suas mais
profundas tradições. Ao contrário!
No
seu artigo, o autor defende que o kilt, os tartans de padrões diferenciados e a
própria gaita de fole são uma tradição escocesa inventada há pouco tempo, tão
recente como a segunda metade do século XVIII. E, mais grave: o inventor
da moda foi um INGLÈS!!!!!
De
acordo com o autor, antes da unificação das coroas, em 1707, o traje
tradicionalmente usado pelos populares escoceses das terras altas era um manto
de peça única com um cinto que o amarrava e se chamava breacan. Já os nobres de então, imitavam
os costumes das classes mais abastadas de Edimburgo e usavam calças compridas justas
e axadrezadas denominadas trews.
O
kilt que hoje conhecemos foi inventado por um Quaker inglês de Lancashire,
denominado Thomas Rawlinson cuja família controlava fornos de
fundição e forjas na Inglaterra e que, em 1727, fez um acordo com Ian MacDonell, chefe do clã
MacDonell de Glengarry, arrendando umas florestas perto de Inverness para
extrair madeira e posteriormente construir um forno para o refino de ferro.
Quando
Rawlinson percebeu o manto com cinto usado pelos highlanders era incomodo e
desajeitado para o labor na forja e na floresta, resolveu simplificar a
vestimenta, adequando-a ao trabalho. Criativo, desenhou um uniforme em que separava a parte de baixo da túnica da parte de cima que eles usavam também como capa. Criava assim o feliebeg
(saia curta com as pregas já costuradas),
que de tão prática e acessível logo se espalhou por todas as Terras Altas,
isto por volta de 1730!!!
O
autor faz questão de frisar que o kilt, nome que popularizou o feliebeg, não era a
vestimenta dos nobres e proprietários de terras ou dos chefes de clãs, mas sim de
seus criados e trabalhadores braçais. Logo,
o tecido utilizado, tanto das mantas antigas, como dos novos kilts, não eram os
hoje famosos tartans multicoloridos, mas sim, tecidos de cores cruas, próximas ao
marrom, que eram mais baratos e, por conseguinte,
não tinham qualquer relação de identidade com a pessoa ou o clã a que
pertenciam.Depois da rebelião dos highlanders jacobitas em 1745 o Rei da Inglaterra, como parte de estratégia de desorganizar a cultura das terras altas e fazer valer os domínios da Coroa resolveu, entre outras coisas, proibir o uso das vestimentas tradicionais da região. Assim breacans, trews, kilts e outros trajes dos montanheses tornaram-se peças excluídas do guarda-roupa da região, sob pena de prisão e deportação para quem contrariasse a norma.
Outra
resposta do Rei ao movimento rebelde foi a implantação dos
primeiros regimentos militares britânicos nas Terras Altas, ocupando a área e canalizando
para o exército oficial o espirito guerreiro dos highlanders. Curiosamente esses
soldados mantiveram a permissão de usar as roupas
proibidas, incluindo os modernos kilts, que logo se popularizaram. Para
se diferenciarem entre si cada regimento passou a adotar um padrão de
tartan. Ou seja, seu uso era restrito aos militares e não tinha qualquer
relação com as famílias tradicionais do norte da Escócia. Estas, se adaptando
aos regramentos reais, preferiam usar roupas que imitavam os padrões vigentes
na corte inglesa ou entre os ricos e famosos de Edimburgo.
Foi
somente no final do século XVIII, influenciados pela teoria do bom selvagem
de Rousseau, que os intelectuais escoceses adotaram uma nova perspectiva em
relação aos brutos extravagantes das terras altas do norte e passaram a considera-los
como representantes da mais arraigada tradição daquele povo. Logo, sociedades se formavam para valorizar a tradição escocesa das Terras Altas
em Londres, Edimburgo e outros centros, tendo intelectuais e
eruditos nascidos naquele país à sua frente.A tradição ancestral do kilt virou verdade absoluta quando, em 1822 (!!!), o Rei Jorge IV resolveu visitar a capital escocesa. Sir Walter Scott, um dos maiores intelectuais do país, fica incumbido de organizar a cerimônia de recepção do mandatário e se propõe a fazê-lo resgatando e valorizando o mais tradicional de sua terra. Para tanto, escreve a todos os chefes de clãs das terras altas convidando-os a virem receber o rei vestindo suas agora tradicionais vestimentas.
A
empresa inglesa Wilson & Son de Bannacknoburn, que há anos produzia os
tecidos de tartan, vê nesta ocasião excelente oportunidade de negócio e, com
chancela da Sociedade das Terras Altas em Londres, cria um catálogo que
relaciona um padrão de cor do tecido a uma determinada família ou clã.
Os
produtos dos Wilson vendem que nem água e no dia da cerimônia a capital
escocesa é invadida por milhares de homens trajando aqueles vestidinhos
estranhos coloridos. Até o Rei adere à moda e aparece vestido como um
tradicional escocês das terras altas, para delírio de muitos e constrangimento
de alguns.
Lorde
Macaulay, montanhês de estirpe, mesmo reconhecendo alguma antiguidade
na vestimenta, achava que esta absurda modernidade havia “atingido um ponto
além do qual não poderia mais ir. O último rei britânico que manteve uma corte
em Holyrood julgou que não poderia dar prova mais definitiva de seu respeito
pelos costumes que prevalecem na Escócia desde a União do que fantasiar-se com
um traje que, antes da União, era considerado por nove entre dez escoceses como
roupa de ladrão”.
Não
posso negar que a tese defendida e bem fundamentada por Trevor-Roper me deixou
cabreiro com relação à ancestralidade das tradições escocesas e suas origens
célticas, mas isto não diminuiu em nada o prazer que foi conhecer aquele país e
aquele povo.Para os amigos que forem para o norte da ilha, deixo uma sugestão: se não dispuserem de tempo de sobra na sua viagem, não precisam ir até Inverness para ver a tradição das terras altas. Invistam seu tempo em Glasgow e Edimburgo que oferecem aos visitantes o tradicional, o histórico e o que há de mais moderno naquele belo país. E divirtam-se com os espetáculos de rua proporcionados por escoceses tradicionais com vestimentas talvez nem tão tradicionais assim.
Já quero ir pra Glasgow e Edimburgo! Sinto-me instigada com a dica. rs... Em tempo, mais um ótimo texto. Uma boa noite de domingo. Beijos.
ResponderExcluirobrigado Ana Luzia... e vá mesmo, a Escócia é um país que merece ser saboreado....
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