sábado, 14 de setembro de 2013

Tradições nas Terras Altas...


Outro dia estava no Fortim, aqui no Ceará, na casa do meu amigo Dr. William curtindo a maravilhosa vista da foz do Rio Jaguaribe e conversando sobre política, quando me deparei com um livro do Hobsbawm de sua biblioteca. Como gosto do autor, não me contive e acabei tomando o volume emprestado.

Ao contrário do que pensei, o historiador Eric Hobsbawm não é o autor do livro A Invenção das Tradições, mas o organizador de uma coletânea de artigos produzidos por vários historiadores discutindo hipóteses de como se formam as tradições e, conforme ele explica, como muitas daquelas que acreditamos serem ancestrais são recentes e criações da própria modernidade. Já o primeiro artigo, A invenção das tradições: a tradição das Terras Altas da Escócia, de Hugh Trevor-Roper trata, me fez lembrar a viagem que fiz para aquelas bandas.

Em um dia que amanheceu frio e chuvoso saímos de Glasgow com destino à cidade de Inverness, capital das terras altas e cidade mais ao norte da Grã-Bretanha. A viagem certamente teria sido melhor apreciada se o dia estivesse ensolarado e luminoso, mas mesmo debaixo de nuvens cinzas e uma chuva renitente pudemos apreciar a beleza das Lowlands e a transição para a porção mais alta e mais ao norte do Pais.
Ali as paisagens se transformam, o verde exuberante se converte em uma cobertura rala e marrom e o cenário parnasiano dos arredores de Glasgow e Edimburgo dá lugar a uma paisagem mais hostil e selvagem. Nem por isso o contraste entre as montanhas, as rochas imponentes, os riachos pedregosos e a vegetação da tundra deixam impressionar pela beleza. É uma terra de horizontes vastos e grandes vazios. Inóspita ao primeiro olhar, mas que aos poucos vai revelando suas belezas e suas facetas mais agradáveis.

Chegando ao nosso destino não podíamos deixar de visitar, imediatamente, a principal atração daquelas paragens – pelo menos para nós estrangeiros – o famoso Loch Ness. O lago, com mais de 35 quilômetros de extensão, é de uma beleza impar e o contraste de suas águas escuras e profundas com as montanhas e pastagens do seu entorno fazem valer sua fama internacional.
Mas em um dia com ventos de um frio cortante, chuvas eventuais e pouco sol, nem mesmo o famoso monstro do lago ousou sair de sua caverna e não deu o ar da graça. Mas certeza que ele estava por lá nos vigiando!

Não tendo sucesso na observação da personagem mais famosa da região, retornamos para a capital das Terras Altas. Inverness é uma cidade pequena (70 mil habitantes) e sem grandes atrativos, além do Lago e dos velhos castelos às suas margens. Ainda assim, caminhamos pelas ruas centrais da cidade e subimos para conhecer o seu castelo, que ainda tem uso administrativo atualmente e é um local de onde se tem uma bela vista da cidade espalhada ao longo do Rio Ness. Nada que justificasse as quase 3 horas de viagem, mas ainda assim, bonitinha.
Convencidos pela praticidade do Vicente e da Marília acabamos almoçando no McDonalds (!!!!!!), franquia americana que globalizou o nome de um dos mais tradicionais clãs escoceses, os MacDonalds, que dominaram o oeste da Escócia e o norte da Irlanda no final da Idade Média, antes de virarem sinônimo de fastfood.

Os tradicionais MacDonalds, segundo Trevor-Roper, jamais usaram os famosos kilts e as gaitas de fole que tão marcantemente associamos à Escócia e suas mais profundas tradições. Ao contrário!
No seu artigo, o autor defende que o kilt, os tartans de padrões diferenciados e a própria gaita de fole são uma tradição escocesa inventada há pouco tempo, tão recente como a segunda metade do século XVIII. E, mais grave: o inventor da moda foi um INGLÈS!!!!!
De acordo com o autor, antes da unificação das coroas, em 1707, o traje tradicionalmente usado pelos populares escoceses das terras altas era um manto de peça única com um cinto que o amarrava e se chamava breacan. Já os nobres de então, imitavam os costumes das classes mais abastadas de Edimburgo e usavam calças compridas justas e axadrezadas denominadas trews.
O kilt que hoje conhecemos foi inventado por um Quaker inglês de Lancashire, denominado Thomas Rawlinson cuja família controlava fornos de fundição e forjas na Inglaterra e que, em 1727, fez um acordo com Ian MacDonell, chefe do clã MacDonell de Glengarry, arrendando umas florestas perto de Inverness para extrair madeira e posteriormente construir um forno para o refino de ferro.

Quando Rawlinson percebeu o manto com cinto usado pelos highlanders era incomodo e desajeitado para o labor na forja e na floresta, resolveu simplificar a vestimenta, adequando-a ao trabalho. Criativo, desenhou um uniforme em que separava a parte de baixo da túnica da parte de cima que eles usavam também como capa. Criava assim o feliebeg (saia curta com as pregas já costuradas), que de tão prática e acessível logo se espalhou por todas as Terras Altas, isto por volta de 1730!!!
O autor faz questão de frisar que o kilt, nome que popularizou o feliebeg, não era a vestimenta dos nobres e proprietários de terras ou dos chefes de clãs, mas sim de seus criados e trabalhadores braçais. Logo, o tecido utilizado, tanto das mantas antigas, como dos novos kilts, não eram os hoje famosos tartans multicoloridos, mas sim, tecidos de cores cruas, próximas ao marrom, que eram mais baratos e, por conseguinte, não tinham qualquer relação de identidade com a pessoa ou o clã a que pertenciam.

Depois da rebelião dos highlanders jacobitas em 1745 o Rei da Inglaterra, como parte de estratégia de desorganizar a cultura das terras altas e fazer valer os domínios da Coroa resolveu, entre outras coisas, proibir o uso das vestimentas tradicionais da região. Assim breacans, trews, kilts e outros trajes dos montanheses tornaram-se peças excluídas do guarda-roupa da região, sob pena de prisão e deportação para quem contrariasse a norma.

Outra resposta do Rei ao movimento rebelde foi a implantação dos primeiros regimentos militares britânicos nas Terras Altas, ocupando a área e canalizando para o exército oficial o espirito guerreiro dos highlanders. Curiosamente esses soldados mantiveram a permissão de usar as roupas proibidas, incluindo os modernos kilts, que logo se popularizaram. Para se diferenciarem entre si cada regimento passou a adotar um padrão de tartan. Ou seja, seu uso era restrito aos militares e não tinha qualquer relação com as famílias tradicionais do norte da Escócia. Estas, se adaptando aos regramentos reais, preferiam usar roupas que imitavam os padrões vigentes na corte inglesa ou entre os ricos e famosos de Edimburgo.
Foi somente no final do século XVIII, influenciados pela teoria do bom selvagem de Rousseau, que os intelectuais escoceses adotaram uma nova perspectiva em relação aos brutos extravagantes das terras altas do norte e passaram a considera-los como representantes da mais arraigada tradição daquele povo. Logo, sociedades se formavam para valorizar a tradição escocesa das Terras Altas em Londres, Edimburgo e outros centros, tendo intelectuais e eruditos nascidos naquele país à sua frente.

A tradição ancestral do kilt virou verdade absoluta quando, em 1822 (!!!), o Rei Jorge IV resolveu visitar a capital escocesa. Sir Walter Scott, um dos maiores intelectuais do país, fica incumbido de organizar a cerimônia de recepção do mandatário e se propõe a fazê-lo resgatando e valorizando o mais tradicional de sua terra. Para tanto, escreve a todos os chefes de clãs das terras altas convidando-os a virem receber o rei vestindo suas agora tradicionais vestimentas.

A empresa inglesa Wilson & Son de Bannacknoburn, que há anos produzia os tecidos de tartan, vê nesta ocasião excelente oportunidade de negócio e, com chancela da Sociedade das Terras Altas em Londres, cria um catálogo que relaciona um padrão de cor do tecido a uma determinada família ou clã.
Os produtos dos Wilson vendem que nem água e no dia da cerimônia a capital escocesa é invadida por milhares de homens trajando aqueles vestidinhos estranhos coloridos. Até o Rei adere à moda e aparece vestido como um tradicional escocês das terras altas, para delírio de muitos e constrangimento de alguns.

Lorde Macaulay, montanhês de estirpe, mesmo reconhecendo alguma antiguidade na vestimenta, achava que esta absurda modernidade havia “atingido um ponto além do qual não poderia mais ir. O último rei britânico que manteve uma corte em Holyrood julgou que não poderia dar prova mais definitiva de seu respeito pelos costumes que prevalecem na Escócia desde a União do que fantasiar-se com um traje que, antes da União, era considerado por nove entre dez escoceses como roupa de ladrão”.
Não posso negar que a tese defendida e bem fundamentada por Trevor-Roper me deixou cabreiro com relação à ancestralidade das tradições escocesas e suas origens célticas, mas isto não diminuiu em nada o prazer que foi conhecer aquele país e aquele povo.

Para os amigos que forem para o norte da ilha, deixo uma sugestão: se não dispuserem de tempo de sobra na sua viagem, não precisam ir até Inverness para ver a tradição das terras altas. Invistam seu tempo em Glasgow e Edimburgo que oferecem aos visitantes o tradicional, o histórico e o que há de mais moderno naquele belo país. E divirtam-se com os espetáculos de rua proporcionados por escoceses tradicionais com vestimentas talvez nem tão tradicionais assim.

2 comentários:

  1. Já quero ir pra Glasgow e Edimburgo! Sinto-me instigada com a dica. rs... Em tempo, mais um ótimo texto. Uma boa noite de domingo. Beijos.

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  2. obrigado Ana Luzia... e vá mesmo, a Escócia é um país que merece ser saboreado....

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