Sempre olhei com desconfiança para esta súbita aparição de livros de autores árabes (afegãos, iranianos, turcos, iraquianos...) nas prateleiras das livrarias e nos guias dos mais vendidos aqui no Brasil.
Lá no fundo presumi que a introdução desses autores e desta literatura para os consumidores brasileiros seria muito mais consequência do esforço dos invasores ocidentais de mostrar como sua ação naqueles países havia provocado um renascimento da sua literatura e, consequentemente, como a ocupação era um enorme beneficio para seus povos.
Assim desprezei-os nas muitas oportunidades que,
passando em uma ou outra livraria, dava de cara com uma dessas estórias
romanceadas do estilo de vida muçulmano. Mas enfim ganhei um livro de Khaled
Hosseini e, como a cavalo dado não se olham os dentes, enfiei-o em minha
mochila e depois de ler tudo o que tinha, acabei encarando O Silêncio das Montanhas.
Devo começar confessando que o livro não é tão
ruim quanto eu presumi que fosse – por puro preconceito – mas também não achei essa
coisa toda.
O romance começa no Afeganistão, num vilarejo
perdido chamado Shadbagh, passa boa parte do tempo em Cabul, mas também viaja
para a França, para a Grécia e para os Estados Unidos, narrando um entrecruzar
de histórias pessoais, num vai e vem, que se inicia lá pelos anos 1950 e
termina em 2012.
Tendo como ponto de partida a separação de dois irmãos
ainda pequenos nos confins do Afeganistão, o autor narra trajetórias de vidas
paralelas e sobrepostas que, por caminhos tortos e sofridos, vão se encontrando
e se perdendo, física e sentimentalmente.Além dos irmãos e da sua vida na perdida Shadbagh, que dão inicio à narrativa, o autor nos apresenta um motorista de uma rica família de Cabul que, por coincidência é tio das crianças, o casal para quem ele trabalha e seus dramas, os vizinhos, um senhor da guerra do período posterior à expulsão do Talibã que constrói a Nova Shadbagh, um médico grego que vai trabalhar na ajuda humanitária em Cabul depois da ocupação americana e os filhos e herdeiros de um Afeganistão que quer se reencontrar.
O livro caminha num ritmo tranquilo, não monótono,
já que a narrativa muda de ritmo para cada personagem que assume esse papel e
são muitos os que o fazem, mas não chega a ser excitante.
As histórias são doídas, pessoas que vivem vidas
sofridas, mesmo aquelas que não passaram pela provação das guerras ou dos
talibãs, sofrem com as escolhas que fizeram, escolhas essas que as distanciaram
de seus países, de seus ideais ou as afastaram das pessoas amadas.
São como histórias de pontes que se partiram ou do
esforço, nem sempre efetivo, de reconstruí-las. Vidas, relacionamentos e
pontes. Vidas que se separam, relacionamentos que se distanciam, promessas que
não se cumprem e as tentativas, quase sempre vãs, de recompô-las.
Estava quase chegando ao fim do livro, confesso
que com algum esforço, quando consegui ter essa percepção do todo. E devo
isto, fundamentalmente, a uma passagem do último capitulo em que duas
personagens, tia e sobrinha, se encontram na França, mas precisamente em
Avignon, conversando diante da ponte da cidade e combinando uma visita à Pont
du Guard, na vizinha Nimes.Estive em Avignon numa viagem de carnaval, durante um mês de fevereiro que não fazia tanto frio assim. Partindo de carro de Barcelona chegamos à cidade de noite e resolvemos procurar um restaurante para jantar, antes de dormir. A temperatura até que estava suportável mas a noite estava chuvosa e resolvemos entrar no primeiro restaurante que encontramos na Place de L´Horloge e, juro, não trago qualquer lembrança dele.
Não fosse o fato de que quando resolvemos voltar para o hotel, algum espertinho tivesse estacionado o carro bloqueando a saída do nosso, esta noite já teria sido perdida nas lembranças de viagens. Depois de muito xingar o infeliz e de algumas manobras ousadas e bem sucedidas, conseguimos escapar do estacionamento passando por cima de calçadas e passeios. Não foi um bom início, diga-se de passagem, mas tínhamos certeza que melhoraria.
O dia seguinte amanheceu também nublado e com o
vento Mistral cruzando as acanhadas ruelas da cidade intramuros, congelando
nossas orelhas, narizes, nos obrigando a andar depressa e de cabeça baixa. Para
escapar da intempérie, decidimos começar logo o dia pelo Palácio dos Papas.
Avignon foi a residência dos Papas de 1309 até
1377, tendo abrigado 7 Papas neste período. Mas ela entrou para a história
quando o Papa Gregório XI tentou reunificar o papado e procurou recuperar o
trono de São Pedro em Roma provocando o Grande Cisma do Ocidente. Por conta
desta crise, entre 1377 e 1417 a Igreja Católica teve que conviver com dois ou
mais papas tentando comandá-la ao mesmo tempo.
Neste período a cidade serviu de residência para
os Antipapas Clemente VII e Bento XIII que por ali ficou até 1394, quando teve
que fugir para o Reino de Aragão, deixando para trás o imponente edifício em
estilo gótico, que hoje abriga um museu bem interessante.
Quando saímos do museu, Avignon premiou nossa persistência
com um dia de sol maravilhoso que convidava para uma caminhada. Parecia que
havíamos entrado no museu em uma cidade e saído em outra. Havia vida e
movimento. Havia cor e alegria, a cidade parecia ter despertado das brumas e
mostrava seu encanto aos turistas e habitantes.
Ainda na parte final da visita ao Palácio, do alto
de alguma torre de vigilância, já podíamos ver, placidamente deitada sobre as
águas escuras do Ródano a ponte da cidade, citada na cantiga infantil Sur la
pont d`Avignon.
Incompleta, uma vez que os anos de intempéries e
as nem sempre tranquilas águas do Ródano, reduziram-na ao meio da travessia (apenas 4 dos 22 arcos originais permanecem), a ponte continua um belo monumento e inspiração para muitos casais enomorados.
Descemos as escadarias do museu para ver de perto
a famosa ponte, que além de bem bonita também tem um pequeno museu que conta
sua história, desde sua primeira construção por volta do século X.
No dia seguinte, igualmente ensolarado, seguimos
para a segunda parada na região, a cidade de Nimes. Situada na fronteira entre
Provence e o Languedoc, Nimes é uma cidadezinha simpática, com menos de 150 mil
habitantes, mas bem organizada e arborizada. Seu ponto alto, do ponto de vista
turístico, é a famosa Arena de Nimes, um anfiteatro romano do período de
Adriano que está totalmente remodelado.
Mas no caminho havia outra ponte a ser visitada:
Pont du Gard.
Situada entre Avignon e Nimes, a tal ponte é um
trecho do magnifico aqueduto romano, construído no século I a.C. para permitir
a travessia da água sobre o Rio Gard com quase 300 metros de extensão a uma
altura de 50 metros.
Ela é espetacular!
Toda a área do Rio Gard nas imediações da ponte
foi transformada em um parque, com direito a trilhas para caminhadas até a sua parte
mais alta, banheiros, lojinhas de souvenires e um pequeno café. Além das
inúmeras fotos, obrigatórias em função da beleza do lugar, fizemos todas as
trilhas, visitamos o museu e paramos para aproveitar um vinho francês e
apreciar a deliciosa vista da ponte, até que o clima começou a virar e
decidimos seguir para o nosso destino original.No livro de Hosseini a Pont du Guard é o lugar onde, depois de uma vida de desencontros, a família dos dois irmãos de pequena Shadbagh marcou para se reunir. O velho aqueduto parece ideal para representar mais uma ponte que tendo servido para ligar cidades e pessoas, como acontece com a ponte de Saint-Bezenet em Avignon ou com as muitas histórias de O Silêncio da Montanha, tenta mas não consegue reuni-las mais.
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