Na minha última visita a Londres me peguei pensando que se
um dia fosse escrever para o Ler & Viver sobre a capital inglesa teria que
fazê-lo em camadas porque a cidade é, de verdade, muitas cidades sobrepostas.
Existe a Londres da idade média, governada por Henrique
VIII, suas muitas mulheres e depois por sua filha Elizabeth I. Esta é a Londres
de Shakespeare, do Hyde Park aberto ao público, do grande incêndio de 1666, da
Catedral de São Paulo e das surdas disputas de poder tanto na corte dos Tudors
como dos Stuarts.
A Londres vitoriana, período em que a cidade era sede do
mais poderoso império do mundo, o Império onde o sol nunca se põe. A Londres de
Sherlock Holmes, do famoso Almirante Nelson e sua estátua na Trafalgar Square,
das primeiras estradas de ferro, do surto de cólera que matou milhares e
obrigou que fossem construídos o seu sistema de esgotamento sanitário. Apesar
de tudo, era a a cidade global que hospedou do filósofo alemão Karl Marx a futura
rainha Maria II, de Portugal.
Ou, a moderna Londres, que sobreviveu aos bombardeios
alemães na Segunda Guerra, que há 60 anos é governada por outra Elizabeth, que
viu nascer o movimento Punk e se transformou em um dos maiores centros culturais
do planeta, com museus, teatros, livrarias e suas bandas de rock.
Tinha pensado que isto significaria a possibilidade de
muitos livros e muitos textos até que dia desses, passando na livraria do
Aeroporto Pinto Martins, em mais uma viagem para Brasília, me deparei com o
livro O Retrato – Um romance de obsessão, escrito pelo americano
Charlie Lovett, que me pareceu interessante.
Gostei da capa, simpatizei com o enredo e quando o vendedor
disse que o livro estava por apenas R$ 36,00, não resisti e comprei-o, mesmo
estando com outro na mochila.
O romance sobre obsessão de Lovett não é tanto sobre
obsessão e mais sobre paixões. Essencialmente, trata das paixões do viúvo Peter
Byerly por sua falecida esposa Amanda e por livros antigos e raros.
O livro começa em 1995 quando Byerly, depois de longos meses
de luto e reclusão resolve retomar sua profissão de comerciante de livros raros
e ao folhear um desses livros vê cair uma pequena aquarela pintada no século
XIX com o retrato de uma mulher. A aquarela retratava sua Amanda ou de alguém
muito parecido com ela, que teria vivido mais de 100 anos antes deles dois
terem se encontrado.
Impressionado com a pintura e querendo entender como sua
esposa poderia ter sido pintada anos antes,
Byerly começa uma investigação para descobrir quem seria A.I, o autor da
aquarela. Neste processo acaba se deparando com um livro do final do século XVI
que poderia ser a prova definitiva de que Shakespeare foi, de fato, o autor das
famosas peças teatrais que converteram o bardo de Stratsford upon Avon no maior
escritor da língua inglesa.
Para contar a história, cheia de mistérios e algum suspense,
Lovett narra três histórias paralelas que, ao seu modo, retratam as diferentes
Londres, coincidentemente nas épocas que eu havia pensado em contar a partir de
diferentes livros.
A primeira história se passa nos últimos anos do Século XX e
narra a paixão de Byerly por sua esposa Amanda: como se conheceram, como se
amaram e como a súbita morte da jovem esposa levou o principal personagem do
romance ao estado de luto e sofrimento que o encontramos no começo da história.
A outra história é a do livro raro que se constituirá no
objeto da disputa do desejo de Peter de entrar para a história da literatura
como o homem que encontrou o “santo Graal” da literatura inglesa e de outros
que esperam ganhar fortunas com a venda da rara publicação e que estariam
dispostos a fazer qualquer coisa para tanto, até matar nosso personagem
principal.
Essa história começa em pleno século XVI quando um antigo
negociador de livros e documentos raros recebe no leito de morte de seu amigo
Robert Greene a primeira edição de seu último livro e o oferece a Shakespeare
que o utiliza como inspiração para sua peça Conto de Inverno. Daí em diante,
acompanhamos a saga do tal livro, que vai passando de mão em mão, até
desaparecer para ressurgir 150 anos depois para surpresa de nosso Peter Byerly.
A terceira história é a da aquarela da sósia da amada Amanda,
pintada por autor desconhecido no Século XIX e que é também a história do
romance proibido entre um nobre casado e uma jovem americana, que estava de passagem
por Londres, durante aqueles anos em que a Rainha Vitória dominava o mundo
conhecido, e encontra o que seria o amor de sua vida.
Como disse, o romance não é uma obsessão, mas é bom o
suficiente para você não querer largar o livro e querer rapidamente chegar ao
final. É um livro que nos leva a passear pela Londres do Século
XVI, com os pés no Século XX e olhos nas belezas do período vitoriano.
É a sensação que se tem quando ao desembarcar do passeio na
London Eye, a enorme e moderna roda gigante às margens do Tâmisa você se depara
com o público entrando do novo Shakespeare Globe Theater, uma réplica do teatro
onde foram apresentadas as peças Hamlet e Rei Lear e que foi permanentemente
encerrado em 1642.
Ou a delicia que é caminhar pelo Kensington Gardens, o
parque público que nasceu dos jardins do Palácio de Kensington que foi a morada
da futura Rainha Vitória durante toda a sua infância e fazer uma parada para
aproveitar o pequeno jardim em homenagem à falecida Princesa Di.
A Londres do hoje nos oferece a agitação moderna do Oxford
Circus, uma das áreas mais movimentadas do West End londrino e um dos mais
belos exemplos da arquitetura de Jonh Nash, um dos principais arquitetos
ingleses do início do Século XIX, que entre outras obras está o igualmente
famoso Palácio de Buckinham, para onde Vitória se mudou depois da morte dos
tios e que se tornou rainha da Inglaterra.
O livro de Lovett nos leva a passear por muitas das atrações
da cidade na perspectiva de um homem que amava a arte, a literatura e a
cultura, em lugar dos grandes agitos que a capital inglesa tem para oferecer
aos seus visitantes. Assim, seus conhecidos, amigos e suas visitas
obrigatoriamente nos levam aos museus da cidade, às operas, livrarias e
teatros. É outra forma de ver a cidade, não apenas em termos de seus períodos históricos,
mas como uma cidade que acumula séculos de riquezas, erudição e cultura.
Ao fim, esteja você admirando as luzes que enfeitam a fachada da famosa loja da Harrods numa caminhada depois de visitar o Museu Victoria and Albert, tirando fotos do Big Ben sentado na amurada da Ponte Westminster ou indo para uma caminhada no Hyde Park depois de comer fish’n’chips em um dos muitos pubs da cidade, Londres provoca paixões quase obsessivas, qualquer que seja a lente que se use para fotografá-la.
Londres...obsessão, amor, livros, rainha, sobrevivência às guerras... Você deu à Londres uma certa alegria, uma certa leveza que eu não havia sentido quando eu a conheci. Vi no céu cinza daquela cidade, uma frieza inteligente, calculada. Enxerguei nos ingleses contrastes incríveis como a simplicidade e a soberania de hábitos reais. Me apaixonei por certas características anglo-saxônicas, mas me senti só entre viajantes de trem e metro que apenas enxergavam seus livros ou ficavam cabisbaixos descansando entre um destino e outro.
ResponderExcluirQuanta historia em uma só cidade... Em suas palavras, você também nos dá o privilegio de conhecê-la.
Londres pode ser isso também... mas tem dias de sol por lá, quando as pessoas e as coisas ganham um colorido todo especial, até mesmo dentro do metrô... "mind the gap"
ResponderExcluirJá digitei e perdeu-se não sei aonde. Magnífico sou explicável por ser filho de Angelica e ter o talento, a humildade e o caráter dos irmãos Carlos, Ana e Lilia. Como não tenho a mesma grandeza deles, faço o comercial diante do orgulho que sinto!
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