Coisa que muito me diverte nas viagens é tentar entender os diferentes idiomas, dialetos e expressões. Naqueles países em que a língua é algo completamente exótico para mim, como o turco, descobrir como se pronuncia determinada palavra ou fonema é passatempo frequente. Em outros casos, como no catalão ou no papiamentu, tento compreender o idioma a partir da minha experiência de outros idiomas, já que aparentemente são próximos. E naqueles que domino me interessa observar os diferentes sotaques, expressões, gírias e nuances que cada povo, cada região adota.
Nesta última categoria está o inglês. Muito me entretém observar os diferentes sotaques nos países onde se fala inglês ou nas diferentes regiões de um país, como no caso dos Estados Unidos. Também gosto de observar os usos que fazem de palavras e expressões que, num primeiro momento, parecem não fazer muito sentido ou trazem um sentido diferente do esperado.
Este é o caso o adjetivo do título desta viagem: agridoce.
Diferentemente de saudade, que nós lusófonos reclamamos ser intraduzível em outros idiomas, o inglês tem palavra para qualificar esta mistura de doce e amargo que nós aplicamos aos alimentos. Em inglês agridoce é bittersweet. Mas como acontece com saudade, que significa mais que sinto sua falta (miss you), bittersweet é mais que agridoce.
Isto talvez explique porque o titulo do romance “Hotel on the Corner of Bitter and Sweet”, de Jamie Ford, tenha sido traduzido para os brasileiros como “Um Hotel na Esquina do Tempo”.
Para o americano, bittersweet é mais que essa contradição entre o acre e o suave que confunde o nosso paladar. A expressão representa também – às vezes mais frequentemente – um sentimento, uma sensação de incompletude ou de realização com frustração. Como se o doce sabor da conquista cobrasse um preço amargo.
Mais ou menos como quando o Fluminense, time que torço (depois do Ceará, é claro!), foi campeão brasileiro com um gol de Fred nos últimos minutos do jogo, praticamente rebaixando o Palmeiras, time dos meus dois filhos. Isto é uma situação bittersweet.
E foi com esta sensação que deixei a cidade de San
Francisco. Um sentimento que não consigo traduzir, assim como o nosso português
não consegue traduzir bittersweet.
Não é que não tenha gostado da cidade, até gostei. Talvez esperasse mais,
talvez esperasse diferente. Não sei...
Claro que fizemos os passeios de praxe. Fomos à Golden Gate e seu parque, almoçamos em um restaurante no Fisherman’s Wharf, fizemos longa caminhada até a estranha Lombard Street, visitamos o imponente prédio da prefeitura, tomamos o cable car até o charmoso Nob Hill e caminhamos pelas ruelas da famosíssima China Town de San Francisco. Ainda assim, fiquei com esta sensação de que esperava mais.
É também em China Town que se passa boa parte do delicioso romance Um Hotel na Esquina do Tempo. Um Romeu e Julieta na segunda guerra, quando chineses e japoneses combatiam lá nos confins do oriente, com reflexos bastante palpáveis nas relações entre os membros da enorme comunidade oriental que desde meados do século XIX vinha para San Francisco inspirada, inicialmente, pela corrida do ouro de 1849 (os famosos forty-niners) e depois pelo sonho do american way of life.
Ademais da beleza singela da paixão entre o jovem Henry, filho de uma tradicional família chinesa, criado para ser um americano, e Keiko, herdeira de nisseis liberais, o romance apresenta uma sociedade americana que, motivada pelo medo da guerra, se torna mais preconceituosa e discriminadora, incapaz de enxergar distinções entre amigos e inimigos, chineses ou japoneses, americanos ou estrangeiros, vivendo uma espécie de “yellow scare”!
Descreve a difícil vida a que de milhares de cidadãos americanos foram submetidos, presos em campos de concentração espalhados pelo interior do país, simplesmente pelo pecado de ser descendente de imigrantes japoneses. Isto independente da idade, do local de nascimento, do “Due Process of Law” ou de há quantas gerações suas famílias haviam aportado em praias americanas.
Mais do que da cidade de San Francisco o romance trata de pessoas, de suas idiossincrasias e de suas paixões. Com facilidade o autor nos coloca na pele deste Romeu oriental e nos faz odiar um pai que o reprime e maltrata sempre se justificando em querer lhe dar o melhor, faz entender as escolhas que as personagens vão fazendo ao longo da estória e nos brinda com um final que, bem melhor que meu exemplo futebolístico, é uma tradução precisa da expressão bittersweet.
Deixei as lembranças do romance e voltei a San Francisco logo que saímos da China Town. O dia estava especialmente bonito, mas por falta de organização não conseguimos agendar a visita a Alcatraz. Ficamos ali, olhando a ilha-presídio e tirando fotos. Ao lado, um casal de americanos conversava com um dos funcionários do restaurante sobre o repentino desaparecimento dos leões marinhos que costumam passar os meses de inverno se espreguiçando sobre uns tablados de madeira que ficam no Pier 39. Nos anos anteriores esses animais chegavam às centenas, com seus estranhos barulhos e seu odor um tanto perturbador. Mas naquele dia conseguimos contar uns dez animais!
Nem os leões marinhos estavam animados em ir para a cidade, pensei!
Por ali ficamos. Caminhando pelo píer, tirando fotos, observando as pessoas que passeavam, corriam ou simplesmente esperavam, como nós, o fim do dia. Jantamos ali por perto e no outro dia estávamos de partida para um passeio a Monterrey.
Este sim inesquecível! A beleza do dia, o Zinfandel Rosé que tomamos e o delicioso almoço de frutos do mar nos proporcionaram um dos melhores momentos de uma viagem para a Califórnia que ainda duraria alguns dias.
Deixei San Francisco com esse gosto na boca. Esse sentimento agridoce difícil de explicar. Ao mesmo tempo em que me diz que esta é uma cidade para onde eu não faço questão de voltar, é um lugar que talvez precise uma nova oportunidade.