Não, não é isso que vocês estão pensando.
Ainda não me dei a oportunidade de ler nenhum dos livros da
série tons de cinza, especialmente depois das criticas da Maria Eduarda, minha
filha, que recomendou não lê-los. Mas não podia perder a frase relacionando a
capital peruana com a sensação que tive nas três ou quatro vezes que estive por
lá: Lima é uma cidade cinza.
Provavelmente por conta da sua posição geográfica, é nas
imediações de Lima que a Corrente Marinha de Humboldt emerge diminuindo a
temperatura da água, tornando a costa peruana extremamente piscosa e aumentando
a nebulosidade da área. Isso que faz com que o céu limenho e, consequentemente, as
águas do mar em frente tenham sempre essa cor acinzentada.
Mas também a areia
limenha é cinza, suas praias, ao pé das árvores, nos terrenos baldios, nas
calçadas, são muitos os tons de cinza.
Talvez por conta dessa sucessão de cinzas, eu, que me
fascino com a luz incidindo sobre paisagens multicoloridas senti uma tendência a me
deprimir nas idas àquela cidade. Muitas vezes imaginei como uma caminhada no
calçadão de Miraflores seria muito mais bonita à luz do sol no fim de tarde ou
tomar um pisco sour enquanto o sol se põe nos mares peruanos?
Mas Lima tem seus brilhos e suas cores. Apesar do tempo
sempre nublado e da chuva que nunca vem – é curioso como a nebulosidade
permanente da cidade raramente se converte em chuva. Diz meu pai que quando ele
morou no Peru, os barracos das periferias da cidade sequer tinham telhados,
pois raramente chovia – a cidade tem monumentos históricos e arquitetônicos de
brilho ímpar.
Lima foi a capital do Vice-Reinado do Peru, durante os
séculos XVII e XVIII e por ela passavam as toneladas e toneladas de prata e
ouro que fluíam da América do Sul espanhola para Madri e, assim, algo da
riqueza e muito do fausto barroco espanhol encontrou representações na cidade.
A Plaza de Armas de Lima, com seus palácios e prédios
históricos, como a Casa de Pizarro, ainda guarda muito deste período de
riqueza, assim como as igrejas, capelas e mosteiros que existem na cidade.
Também no Museu do Ouro pode-se ter uma ideia das riquezas desse período, seja
pelas maravilhosas joias do período pre-colombiano, seja pela representação dos
quartos cheios de ouro e de prata que Pizarro pediu aos Incas como resgate de
seu líder Atahualpa.
Mas o livro que me acompanha na viagem para Lima não trata
do período da colônia espanhola, mas do início do Século XIX quando toda a
América do Sul se movimentava em busca de sua independência. Escrito por Miguel
Bonasso, o livro La Vengazna de los Patriotas, tem como pano de fundo as guerras
de independência promovidas por José de San Martin, especialmente a
independência do Peru, tendo personagem principal Bernardo de Monteagudo, advogado,
jornalista e ativista político, nascido em Tucuman, no nordeste da Argentina, que
participou ativamente das companhas San Martín.
Apesar do caráter histórico do romance, o livro de Bonasso é
uma novela policial tendo como motivação central as investigações sobre o
assassinato da personagem principal nas sombras nas ruas limenhas, depois de
ter alcançado todo o sucesso nas investidas revolucionárias na América do Sul.
Nesta investigação somos apresentados ao Coronel Ayala,
personagem ficcional, que é o investigador e, ao mesmo tempo, o encarregado por
cumprir as missões menos nobres de Monteagudo neste esforço de se consolidar no
poder. Conhecemos também a importância de San Martin nos processos
emancipatórios de Argentina, Chile e Peru. Uma importância equivalente à de
Bolivar, só que sem a pretensão bolivariana de construir uma América espanhola
unida.
Partindo de Santiago de Chile, onde haviam ajudado Bernardo
O´Higgings na independência daquele país, Monteagudo e San Martin embarcam em
uma esquadra com 24 navios para sitiar e tomar o principal bastião espanhol na
América do Sul. Com ajuda do mercenário Lord Cochrane – o mesmo que vai ajudar
Pedro I a consolidar a nossa independência – os revoltosos fecham a entrada do porto e
tomam o Callao, porto-fortaleza que protegia a cidade de Lima.
De lá organizam o cerco à cidade, que resiste às investidas
dos revolucionários, sendo destacado o papel de Monteagudo nas ações de
propaganda política e no estímulo aos limenhos que também aspiravam a
independência de Espanha. Depois dos sucessos militares e das bem urdidas
tramas, San Martin entra na capital peruana como herói libertador e, o povo
peruano, entrega a ele o governo da nação que se torna autônoma e outorga o
título de El Protector Supremo.
Mas o general é um guerreiro, mais que um governante, e
prossegue nas suas campanhas pela libertação sul-americana. Neste processo, o
leitor vai testemunhar o encontro dos dois maiores generais da América
espanhola em Guayaquil, no que viria a ser o Equador, depois que Bolivar já havia
conquistado a emancipação do que hoje conhecemos como Venezuela e Colômbia e o
San Martin com vitórias na Argentina, no Chile e Peru.
Em Lima, Monteagudo, que havia sido deixado por San Martin
como seu preposto na estruturação da república peruana, começa a se envolver na
rede de intrigas e interesses dos lideres do movimento peruano e do que restara
da antiga corte do Vice-Rei de Espanha, pelo menos daquela parcela que havia
aderido ao movimento revolucionário, já que os que se mantiveram fiéis à Coroa
Espanhola haviam fugido para o Alto Peru.
Enquanto os generais, tendo à frente Bolívar, retornam para fazer
frente ao que sobrara do exercito espanhol que se refugiara nas florestas e nas
montanhas da Bolívia, a situação política de Monteagudo e San Martin piora
dramaticamente em Lima, com uma série de denúncias de favorecimentos, corrupção
e enriquecimento ilícito. Somando-se a isto a tendência a namorador de Bernardo
de Monteagudo, está montado o cenário para a deposição e exilio do preposto de
San Martin e, pouco depois, para o seu assassinato numa noite qualquer numa
viela de Lima, nas imediações do Palácio do Governo.
A queda e exilio de Monteagudo é o ponto final no governo
peruano do Protetor. Desencantado com os rumos das independências
sul-americanas, San Martin parte para o exílio na Europa, indo terminar sua
vida em seu refúgio pessoal em Bruxelas. Em Lima as investigações e perseguições decorrentes do
assassinato de Monteagudo dão margem a ajustes de contas e outras mortes em meio
à disputas de poder, envolvendo a igreja, funcionários do Estado e
as famílias mais nobres de Lima.O Callao ainda é o principal porto do Peru, como era há 200 anos atrás, e daí ainda se divisa o Castelo Real Felipe, que já o protegia desde os anos dourados do vice reinado. Também ali está uma base naval e o colégio militar para realçar sua importância para a segurança do país.
Ademais, agora a cidade é a porta de entrada para turistas e visitantes de todo o mundo, pois ali está o aeroporto internacional de Lima. Logo, todos que visitam a capital peruana hoje, se obrigam a percorrer a ligação entre Lima e Callao, que na época de San Martin se fazia a cavalo por fazendas e campos, onde Monteagudo se refugiava em conspirações e encontros amorosos e que hoje é uma larga avenida que mal comporta o intenso ir e vir de carros, ônibus e taxis verde-brancos.
A cidade também se expandiu para muito além dos limites da antiga capital e hoje é uma metrópole com cerca de 8 milhões de habitantes, com uma culinária cada vez mais refinada e reconhecida – especialmente os ceviches – e com uma noite muito agitada.
Mas quando amanhece, o mar continua a refletir o monótono tom de cinza dos céus de Lima, que hoje contrastam com a cidade cheia de luzes e movimento, mas que acobertaram a chegada da frota de San Martin e que permitiram que Monteagudo encontrasse o auge de sua carreira e a sua morte.