Nessa semana minha avó Dolores completa 99 anos, por isso, a viagem com livros que proponho é tão familiar, tanto na escolha da autora, como na escolha do destino: o Rio de Janeiro.
Familiar porque já fui ao Rio inúmeras vezes, pelos mais variados motivos: por razões de trabalho, a passeio, para o carnaval, para um evento cultural ou para o aniversário de 40 anos do meu irmão que mora ali em um apartamento em Ipanema, bem na Praça General Osório.
Entretanto, tantas idas e vindas à capital fluminense não significa que tenha me apaixonado incondicionalmente pela Cidade Maravilhosa, impressionado pela sua exuberância natural ou pela sua agitada vida social. Pelo contrário!
Demorei a gostar do Rio de Janeiro. Não que suas
belas praias, o Corcovado, o bondinho do Pão de Açúcar ou de Santa Teresa ou
mesmo o carnaval não componham a receita quase perfeita para arrebatar corações
e provocar paixões fulminantes, não por isso, mas porque, apesar de todos os
atrativos, sempre desconfiei do seu caráter.
Ao longo desses anos, sempre me impressionou o
fato de que quando eu ia para lá, mesmo nos anos em que o problema da criminalidade
estava mais crítico, eu não tinha medo pela violência. Iria, como fui mais de
uma vez, à Rocinha, Vigário Geral, Parada de Lucas e outras áreas consideradas
pouco recomendadas. Até mesmo na Maré fui mais de uma vez, por conta do
trabalho. Isso antes das tais UPPs. Mas isto não me incomodava.
O que realmente me incomodava era uma estranha sensação
de que todos estavam ali para “se dar bem” em cima do primeiro otário que
aparecesse e, o otário era eu! Assim, o motorista de taxi, o vendedor de biscoitos Globo, o garçom do botequim ou um
vendedor de rua eram permanente ameaça e toda relação – principalmente aquelas
que envolviam dinheiro – ficava comprometida por uma sensação de que eu estava
sendo enganado. Certamente o problema era meu, mas me assustava a falta de
caráter do Rio.
Falta de caráter também é o viés adotado por
Isabel Lustosa (estão vendo porque é uma viagem familiar) para tratar dessa
maravilhosa personagem da história brasileira no seu excelente livro Dom
Pedro I – Um Herói sem Nenhum Caráter.
Com um texto de muito boa qualidade e fundamentada
em sólida pesquisa, a autora mostra um imperador que se declarava liberal – e assim
foi tratado por seus pares portugueses – mas que dissolveu a constituinte de
1823 e nos outorgou a Constituição de 1824 com a inovadora figura do Poder
Moderador.
Um gestor que se cercou de assessores de caráter
mais que duvidoso, que deixava a corrupção grassar ao redor e vivia se endividando
com gastos desmedidos, mas que era extremamente mesquinho nos gastos da
Imperatriz e na sua casa.
Um marido que colecionava amantes, sem o cuidado
sequer de esconder ou disfarçar, que expunha as mulheres que dizia amar a
constrangimentos e violências, mas que se entregava de forma apaixonada a elas,
às vezes quase sendo romântico.
Segundo Isabel, Dom Pedro era assim: o homem com
muitas falhas de caráter e o herói que num arroubo proclamou a independência do
Brasil, enfrentou a resistência portuguesa, reprimiu os levantes e manteve unido
um Império de largas extensões e grande diversidade, enquanto o resto da
América do Sul se fragmentava em inúmeras repúblicas.
Um herói também para os portugueses, quando ao
abdicar da Coroa brasileira deixando seu filho Pedro para substituí-lo, voltou
a Portugal, enfrentou os conservadores ligados ao seu irmão Miguel, ratificou a
constituição liberal nascida nas Cortes do Porto e deixou sua filha Maria como
Rainha.
Um herói que vivia nas noites do Rio de Janeiro,
na companhia do inseparável Chalaça, bebendo, se metendo em confusões e
correndo atrás de qualquer rabo de saia, quando assim o apetecia. Um homem
capaz de, a partir da Corte do Rio, ser notado em américas e europas, pelo bem
e pelo mal, merecendo assim ser colocado no panteão de heróis de duas nações.
Um herói Macunaíma, mas um herói.
Assim como Pedro, assim como o Rio de Janeiro. Cidade
berço da malandragem, onde a lei de Gérson parecia sempre prevalecer, mas cidade
de beleza incomparável, com uma riqueza natural indisputável e um patrimônio histórico
que todos os brasileiros precisam conhecer.
O Rio de Janeiro do Paço Imperial, da Cinelândia
ou do almoço no Aprazível lá em Santa Tereza. O Rio do bar Devassa em Ipanema
ou mesmo de uma cerveja gelada em qualquer um dos muitos barzinhos do Leblon ou
do Leme. O Rio das Laranjeiras, da Tijuca, da Zona Norte e, até mesmo, o Rio da
Barra. O Rio do Maracanã, da Lagoa Rodrigo de Freitas, dos ótimos centros
culturais e museus no centro, do futebol com os amigos no aterro do Flamengo ou
do vôlei de praia em Copacabana. São muitas cidades, muitas opções. Todas
merecem uma visita e tem seu valor.
Da minha parte, já há alguns anos consegui superar
o preconceito que tinha com a Cidade Maravilhosa e sua população. A cada
visita, a cada permanência conhecia novas pessoas, fazia amigos, descobria
recantos da cidade onde se leva uma vida pacata e amistosa.
Claro que o Rio continua sendo a cidade da
malandragem e que, como toda cidade daquele tamanho, tem seus espertos querendo
levar vantagem em tudo. Mas a cidade é muito mais que isto.
Por isto e porque essa é uma viagem familiar, a
foto escolhida para representa-la tem a malandrinha carioca mais querida do
mundo: minha sobrinha e afilhada Júlia. Hoje isso é o que melhor representa a
malandragem do Rio para mim.
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