quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

Amsterdã liberal, não libertina.




Cafés onde se pode fumar maconha sem qualquer preocupação. Ruas cheias de janelas com mulheres que oferecem serviços sexuais para os transeuntes. Tolerância para movimentos revolucionários e libertários de todos os matizes.

No imaginário coletivo a cidade de Amsterdã apresenta-se como uma cidade de total liberdade ou quase libertinagem Mas uma caminhada pelas ruas e pelos canais da bela capital da Holanda, ou melhor, dos Países Baixos, rapidamente nos afasta desta imagem preconcebida.

Claro que tantos os cafés como as janelas do Red Light District estão lá, disponíveis para os que procuram esses prazeres mundanos, mas quem toma um trem, pega um dos barcos que fazem transporte público nos canais interligados ou passeia pela Rembrandtplein, não percebe este clima de libertinagem, ao contrário!

A população e a cidade são sóbrias, tranquilas e respeitadoras dos costumes e das individualidades. Esse aparente paradoxo entre uma sociedade com elevado grau de tolerância para essas liberdades e uma população trabalhadora e pacata podem ser explicadas, entre outras coisas, por um costume tão próprio dos moradores de Amsterdã que tem uma palavra própria em holandês o “gedogen” que pode ser traduzido como algo que é tecnicamente ilegal, mas oficialmente tolerado.

Pelo menos essa é parte da explicação que Russell Shorto, um escritor americano radicado em Amsterdã, apresenta na introdução do seu livro Amsterdam, A history of the World´s Most Liberal City, onde ele conta a história da cidade a partir da formação e desenvolvimento do pensamento liberal na Europa e no mundo. Ou seja, a hipótese central do autor é a de que Amsterdã – por conta de uma série de características e condições históricas particulares – pode ser considerada o berço do pensamento liberal no mundo.

Inicialmente, é claro, o autor precisa deixar claro de que liberalismo ele está falando, já que ser liberal é um conceito cuja compreensão tem variado ao longo do tempo e nas diferentes regiões do mundo. Para Shorto o liberalismo que nasce na Amsterdã do século XVII é aquele baseado na valorização do indivíduo e no respeito ao direito dele exercer livremente suas escolhas particulares, sejam elas de ordem política, econômica, cultural ou religiosa.

No seu esforço em descrever a abrangência do liberalismo de Amsterdã o autor aponta as seguintes contribuições para a cultura ocidental e para “uma ideologia centrada em crenças quanto às liberdades individuais”: a criação do primeiro mercado de ações; uma sociedade focada nas preocupações e confortos dos indivíduos e que é governada por indivíduos agindo de forma conjunta e não baixo o tacão de uma força externa; a tolerância como princípio, seja ela religiosa, étnica ou de qualquer outra natureza; a arte como experimento da individualidade do ser humano e da preocupação em nos entendermos; o conceito de lar – a casa da família – como um espaço privado e aconchegante, em justaposição à corte e as casas do período medieval em que várias famílias eram obrigadas e viver conjuntamente e não eram claros os limites entre o privado e o público.

Apesar de buscar explicações para as condições particulares da história da formação da cidade de Amsterdã que permitiram que ela ocupasse posição de relevância no liberalismo mundial, o autor centra seu argumento na “era de ouro” dos Países Baixos. Assim, parcela maior do livro e da história da cidade que ele conta está dedicada aos anos da influência da cidade sobre a economia mundial durante os 1600´s, desde quando se iniciam os movimentos de independência do Reino de Espanha – na verdade do Sacro Império Romano – passando pela criação da Companhia das Índias Ocidentais (VOC), até a criação da república batava, sob o comando de De Witt.

Mas antes de chegar a este ponto da narrativa o autor descreve como o processo de criar um país a partir de uma área permanentemente inundada com uso de diques, canais e moinhos de vento moldou não só a Holanda que hoje conhecemos, mas este caráter que concilia a necessidade de trabalhar coletivamente, com a importância de respeitar as individualidades.

Este processo é tão presente na história da cidade que seu nome Amsterdã deriva do dique que foi construído como barragem do Rio Amstel (Amstel + Dam) e que hoje é o coração e a praça central da cidade.

O livro também conta uma surpreendente novidade: o primeiro ciclo de expansão da cidade – por volta dos 1300 – se deu devido a uma hóstia milagrosa que transformou Amsterdã num centro de peregrinação da cristandade, até o Sacro Imperador Maximiniano I fez peregrinação à cidade para pedir pela cura de seu filho, graça que acabou por receber, e que levou a construção de um sem número de mosteiros, igrejas e conventos na cidade.

Apesar dessa origem devocional, a cidade, ressaltando seu caráter liberal, aderiu às teses de Erasmo de Roterdã, Martinho Lutero e depois Calvino para se tornar um dos principais centros protestantes do norte da Europa. Não obstante o esforço do Imperador Carlos V e seu filho Felipe II em fazer valer o catolicismo romano e até mesmo de levar a Santa Inquisição para os Países Baixos, a repressão aos protestantes em Amsterdã foi, por assim dizer, para Inglês ver!

Era o famoso “gedogen” em ação. Apesar do protestantismo ser ilegal, desde que a pessoa não abusasse – basicamente mantivessem os cultos religiosos em lugares discretos – o governo olhava para o outro lado e não se metia na vida das pessoas. O problema é que chegou um momento que os tais encontros secretos – que se realizavam fora dos muros da cidade – passaram a reunir, discretamente (!), mais de cinco mil pessoas!!!

Assim, quando o Duque de Alba chegou aos Países Baixos e se instalou em Amsterdã para fazer valer os ditames do Sacro Imperador Romano, invadindo e ocupando as cidades holandesas e perseguindo todos os hereges após a instalação do Santo Ofício, os holandeses, sob o comando do Príncipe de Orange, se rebelaram e estourou a guerra dos 80 anos que culminou com a independência dos Países Baixos e com a primazia de Amsterdã como a capital da federação recém nascida.

É nesta Amsterdã liberal que as ideias de Erasmo de Roterdã vão ser publicadas, debatidas e influenciarão o movimento protestante à Igreja Católica de então. É também ali que René Descarte vai buscar abrigo, apoio e alguém com coragem para editar e publicar o seu revolucionário Discurso sobre o Método (que depois entrará no Index de Livros Proibidos pelo Vaticano) e onde o filósofo inglês John Locke vai buscar asilo, pois era perseguido na Inglaterra. Segundo o autor, na sua temporada pela cidade, incentivado pelos intelectuais liberais da época, ele faz algumas de suas primeiras publicações – sob a influência do pensamento local escreve A Letter Concerning Toleration – para depois se transformar no ideólogo do liberalismo.

Amsterdã é também o destino de milhares de judeus e cristãos novos que fogem da península Ibérica durante os anos mais duros da repressão Católica. Na cidade dos canais – em pleno desenvolvimento econômico e urbano – eles encontram o ambiente de tolerância necessário para se estabelecerem, resgatarem suas práticas religiosas e desenvolver sua aptidão para os negócios.

Entre os muitos filhos de judeus portugueses nascidos em Amsterdã é Bento De Espinoza – mais conhecido pelo seu nome hebreu Baruch Spinoza – que vai encarnar, sempre na opinião de Shorto, o espírito liberal da cidade e se tornar personagem central no seu argumento de como, desde Amsterdã do Século XVII, os ventos do liberalismo sopram e transformam todo o mundo ocidental.

Liberal certamente Amsterdã é. Ainda nos dias presentes a cidade é palco das mais variadas manifestações dos mais variados grupos, setores e propósitos. A famosa foto de John Lennon e Yoko Ono deitados numa cama de hotel (Bed Peace) foi tirada na cidade dos canais. Mas mais que liberal, Amsterdã é uma cidade para o individuo.

Interessante – isto o autor também destaca – como uma cidade que foi rica como ela foi durante quase um século é uma cidade sem prédios monumentais ou obras épicas.

O turista que passeia pelas suas ruas e canais não irá se deparar com nenhum castelo querendo competir com Versalhes ou uma igreja querendo rivalizar com São Pedro. Não há bulevares monumentais ou arcos triunfantes. Mesmo a Dam Square – a praça central da cidade – é bem normalzinha, por assim dizer.

A beleza da cidade está na sua solução urbanística projetada há mais de 300 anos e que até hoje mantem-se funcional. Está também no delicioso contraste entre os canais e as casinhas multicoloridas, de mesmo estilo, cada uma com seu barco à porta ou com flores enfeitando os parapeitos das janelas.

A cidade é plana, totalmente plana, ótima para uma caminhada ou para o passeio de bicicleta, o que permite que os turistas possam transitar por todo o centro sem ter que recorrer a coletivos, taxis ou outras soluções mais onerosas. Amsterdã é um convite para um passeio.

Como não há monumentos para buscar, cada rua, cada nova esquina, cada ponte sobre um canal pode revelar, para o turista, na rua seguinte uma pequena praça, uma feirinha de fim de semana ou um lugar que você se sinta bem, estando com você mesmo.

É claro que muito ficou do período da era dourada do desenvolvimento holandês, em especial no que se refere à arte e principalmente em se tratando de pintura. É bom lembrar, entretanto, que muito da produção dos Países Baixos antes da independência vai ser encontrado em Madri.

Quem busca Rubens, Van Dyck e similares fará melhor indo ao Museu do Prado, mas se você quer Rembrandt, Vermeer e seus contemporâneos, o  Rijksmuseum tem para todos os gostos. Não muito distante, ainda na Museumplein, está o Museu Van Gogh com obras deste espetacular pintor holandês. Quando estive por lá havia uma exposição temporária sobre a noite em Van Gogh com obras de tirar o fôlego.

A cidade tem ainda um sem número de museus para todos os gostos: do sexo, da Heineken, Madame Tussaud´s e o da Casa da Anne Franck – esse eu até me dispus a ir, mas quando cheguei, a fila para entrar era quilométrica. Assim, resolvi seguir a máxima da minha avó Ilay e “dar por visto”.

A visita ficou reservada para uma próxima ida à capital dos Países Baixos, desde que não esteja um dia de sol tão maravilhoso quanto aquele. Porque se a fila estiver igualmente grande, vou preferir seguir caminhando pela cidade, vendo o vai e vem das bicicletas, o movimento das famílias com suas crianças brincando nas praças ou dos jovens namorando no Vondelpark, comendo uma batata frita com maionese comprada em um dos muitos quiosques espalhados pelas ruas e apreciando o delicioso clima da cidade mais liberal do mundo.

domingo, 15 de dezembro de 2013

Mistério em Colônia!


Aqui estou eu mais uma vez às voltas com Umberto Eco no Aeroporto da Portela. Desta vez não por conta de um livro do autor italiano, mas porque ao procurar um livro para minha última viagem me deparei com um volume que se anunciava o melhor thriller medieval desde O Nome da Rosa!!!

Fã declarado do romance medieval que junta mistério, religião, morte e livros, produzido há cerca de 30 anos, não me contive e comprei o tal deixando outros que pareciam igualmente interessantes para uma próxima oportunidade.

A Oficina dos Livros Proibidos, de Eduardo Roca, é um romance que se passa na Alemanha medieval, mais precisamente na cidade de Colônia e, assim como aquele escrito por Eco, também trata de livros, igreja, mortes e mistérios. Mas devo confessar que a propaganda é um tanto enganosa.

Apesar do bom texto, especialmente na sua ambientação da Colônia no medievo, o romance é longo, com grande número de personagens, mais ou menos importantes, que vão sendo apresentadas à trama paulatinamente o que, para o meu gosto, faz com que o suspense e o mistério demorem demais a aparecer.

Personagem central da história, Lorentz é um ourives apaixonado por livros e por literatura que, por conta de ser canhoto, nunca conseguiu aquilo que realmente sonhava: ser copista e trabalhar em uma oficina especializada em copiar livros. Essa frustração acaba transformando-o, de acordo com o autor, em um precursor de Gutemberg.

A estória se desenrola em torno da vida de Lorentz e sua filha Erika, que em sua pequena casa em um bairro pobre de Colônia, começam a trabalhar na invenção de uma máquina capaz de copiar livros. Lorentz vai, passo a passo, desde a concepção dos tipos, passando pelo desenvolvimento dos tipos móveis, até as soluções que ele encontra para a prensa, a tinta e o uso do papel, por método de tentativa e erro, descobrindo o invento que irá revolucionar a história do mundo cristão e fazer dos livros algo barato (!) e acessível.

Nesta trajetória somos apresentados ao Burgomestre de Colônia (equivalente ao prefeito de então), ao Arcebispo que é, ao mesmo tempo, Príncipe Eleitor do Sacro Império e grande potentado de toda a região, ao rico proprietário da maior oficina de livros da cidade e ao pequeno círculo dos eruditos que pretendem difundir conhecimento e que vão apoiar o ourives na sua invenção.

As coisas caminham bem para Lorentz e sua engenhoca até que uma encomenda anônima para a produção de 200 volumes dos Evangelhos em Alemão – e não em Latim – vai colocar a ele e seus amigos no centro de um turbilhão político e religioso.

É neste momento, quando bíblia traduzida cai nas mãos do Arcebispo e o Burgomestre começa uma violenta investigação para descobrir a sua origem, que o thriller, por assim dizer, toma conta da leitura. Mas para tanto, o leitor já teve que trilhar quase 75% da estória e os menos obstinados talvez já tenham se enfadado das ruas de Colônia e das aberturas de capítulos sempre com referências às condições climáticas da cidade.

Muito diferente da experiência de ler O Nome da Rosa que nos prende desde a primeira página e não nos deixa larga-lo antes de saber quem está por trás dos misteriosos assassinatos que acontecem no mosteiro onde a trama está ambientada. Daí a propaganda enganosa!

Ao contrário do livro de Eduardo Roca, a cidade de Colônia nos prende desde o primeiro momento. Não há como não se impressionar com a magnifica catedral, o Kolner Dom que, de forma altaneira, vigia o Reno desde suas imensas torres e sua gigantesca estrutura.

Assim que você desembarca do trem e sai para a Bahnhofsvorplatz ela está lá, imponente, inescrupulosamente te obrigando a olhar para os céus e se sentir pequeno diante de sua beleza e altivez. Ao subir os degraus que levam para o pátio da Catedral o visitante está no ponto de partida e de chegada de qualquer roteiro na cidade e ela e seu entorno merecem uma visita sem pressa.

A Kolner Dom levou mais de 600 anos para ser construída – tanto assim que na novela de Roca ela ainda está em obras – e é a maior catedral gótica da Europa, capaz de tirar o fôlego de qualquer visitante, seja pelo seu tamanho e imponência, seja pela beleza de suas peças, especialmente o relicário onde estariam os restos mortais dos Três Reis Magos.

Mas Colônia é muito mais que a Dom. 

Tive a sorte de me hospedar nesta cidade bem no inicio do verão por conta da minha participação na COP 17 de mudanças climáticas e depois voltei lá para mais uma visita no final do outono, já começando a fazer frio. Nas duas ocasiões aproveitei para passear pelas ruas apertadas da cidade medieval, almoçar nos restaurantes que ficam no Fischmarkt, bem de frente para o rio, onde, na época em que se passa o thriller ficavam as docas do movimentado porto fluvial da cidade.

O lugar continua movimentado e agora, além do porto, tem um delicioso calçadão por onde se pode gastar boas horas caminhando, apreciando a beleza dos prédios de época, tomando uma Kolsch (cerveja típica de Colônia) num dos bares ou afastando o calor com um sorvete. Ali se pode pegar um barco e fazer um passeio pelo Reno, como também é de lá que se toma o barco para a cidade vizinha de Dusseldorf.

Se preferir continuar em terra firme, a caminhada no sentido oposto ao da catedral te levará ao museu do chocolate, que não é esse balaio todo, mas para os apreciadores da iguaria asteca tem uma lojinha com grande sortimento de chocolates e outras tantas variedades de doces e guloseimas.

Na primeira vez que estive por lá dei a sorte de descobrir que no Heumarkt, uma praça central na cidade antiga, estava acontecendo um festival de vinhos da região. Digo que dei sorte porque só descobri o evento porque peguei o trem errado e tive que saltar na estação da praça para fazer uma baldeação e me vi cercado por toda aquela algazarra.

Como era verão, chegava à praça voltando de Bonn por volta das 19 horas, com dia claro e ficava perambulando por ali, experimentando todas as variedades de vinho, sempre acompanhado de um salsichão alemão, que assim como a bebida, também vem em muitas opções. Dediquei boa parte de minhas noites jantando naquela praça, observando a animação das pessoas que, saindo do trabalho, iam encontrar amigos, familiares ou, assim como eu, apenas ver movimento.

Ali por perto fica a Rathaus, o antigo prédio da prefeitura, o museu da água de Colônia (que como o nome indica foi inventada ali em 1709), além de várias cervejarias tradicionais, as Brauhaus, onde se pode apreciar um joelho de porco com mais uma cerveja, preferencialmente, uma produzida na casa.

Tomando novamente a direção da catedral, passa-se pelo variado comércio da parte central da cidade e, na esplanada da grande igreja, não se pode deixar de visitar o ótimo museu do período do Império Romano, o Romisch-Germanisches Museum.

Colônia era a principal cidade do Império Romano daquelas bandas e seu nome vem deste período. A cidade chamava-se então Colônia Agripina, em homenagem a sua filha mais ilustre, Agripina, que veio a ser a mãe do piromaníaco Imperador Nero. Durante seus anos de poder e glória Agripina protegeu e favoreceu sua terra natal e, consequentemente, são muitas as referências a ela na história da cidade e nas peças do museu.

Também ali perto, por trás da Catedral – passando ao largo do Museu Ludwig, de arte moderna, que fica imediatamente atrás do primeiro – se alcança uma das pontes da cidade, aquela por onde passam os trens que vão para a estação central. Além de ser uma travessia gostosa, dependendo do clima é claro, ela permite belas fotos do skyline da cidade. Para minha surpresa, é a ponte em toda a Europa que eu mais vi ter aqueles cadeados pendurados, representando os votos de casais enamorados de todo o mundo.

Do outro lado do rio, a cidade é mais moderna e mais ampla e por onde se distribuem boa parte dos mais de 1 milhão de moradores de Colônia. Em geral, os hotéis daquele lado são mais novos e também mais baratos. Nas duas vezes que estive por lá, fiquei daquele lado e apesar do bom sistema de transporte público, várias vezes preferi fazer a travessia a pé aproveitando ao máximo minha estada.


Depois, ao ler sobre a cidade e suas atrações, descobri que também para aqueles lados havia coisas a conhecer e lugares para se divertir, mas confesso, que assim como os livros sobre história me atraem nas prateleiras de livrarias, mesmo quando são thrillers não tão bons, as partes antigas das cidades europeias exercem uma atração tal que dificilmente consigo me aventurar pelos outros bairros.

domingo, 20 de outubro de 2013

Ouro, emboabas e as Geraes...


Semana passada seguia no meu voo regular de Fortaleza para Brasília quando duas passageiras que estavam a caminho de Belo Horizonte me pediram sugestões para sua programação nas Alterosas. Além das dicas de praxe – Palácio da Liberdade, Pampulha, Savassi e etc... – sugeri que aproveitassem o fim de semana para conhecer Ouro Preto e as cidades históricas da região.

A antiga Vila Rica, capital das Minas Gerais até 1897 quando Belo Horizonte assumiu este papel, é o mais belo complexo arquitetônico do ciclo do ouro do Brasil.
Suas igrejas esplendorosas, o maravilhoso casario que nos acompanha no interminável sobe e desce das ladeiras da cidade e o conjunto de prédios históricos são a principal evidência da prosperidade e da riqueza que aquela cidade, encravada no meio de lindas serras, viveu durante o século XVIII.

Mas chegar até aquele ponto não foi tarefa fácil nem missão para fracos. É isto que nos conta o interessante livro Minas do Ouro, de Frei Beto, um romance histórico que narra a saga da família Arienim paralelamente com a história das Minas e homenageia os três séculos de fundação de Ouro Preto, Mariana e Sabará, comemorados em 2011.

Antes da derrama e do martírio de Tiradentes, o heróis da família Arienim, muito tiveram que fazer para merecer seu lugar na estória em questão. Fulgêncio, primeiro membro da família a protagonizar a narrativa de Frei Beto é um português que, como muitos outros, vem dar na cidade de Salvador em busca da riqueza fácil e que, depois de muitas decepções e dissabores, decide deixar tudo para tentar a sorte na busca de metais preciosos nos interiores do país.
Depois de várias missões fracassadas seu filho, Prudêncio, troca Salvador por São Vicente vai dar na nascente cidade de São Paulo dos Campos de Piratininga, junto com seu filho único Olegário. Este herda do avô a vontade de desbravar os sertões e um mapa das serras das esmeraldas onde ele esperava encontrar sua fortuna.

Ao descrever a aventura de Olegário e sua família de embrenharem-se pelos sertões o autor nos apresenta os verdadeiros construtores do que viria a ser a principal fonte de riqueza do império português no século XVIII, os destemidos bandeirantes paulistanos.
Homens rudes, sem qualquer educação, forjados na preação dos indígenas que depois eram vendidos como escravos, muitos deles mais bugres que lusitanos, mais ameríndios que europeus, abriram ao custo de muitas perdas e muitos fracassos as trilhas que por volta de 1690 resultaram no achado, nas imediações do pico do Itacolomi, daquela primeira pedra preta que logo depois se descobriria ser ouro.

Ao longo da história da família Arienim aparecem personagens que frequentaram nossos bancos escolares, como Fernão Dias, Anhanguera e Manuel de Borba Gato. Este último personagem destacado porque na ficção de Frei Beto é para ele que Olegário e seu filho Vitorino vão trabalhar na organização das frentes de exploração dos metais preciosos na região.
Foram Fernão Dias e Borba Gato que com seu espirito aventureiro, sua veia empreendedora e depois de se livrar do representante da coroa para as Minas Gerais, o Governador das Esmeraldas Don Rodrigo de Castel Branco, se perderam pelos sertões bravios da região participam das primeiras descobertas e da fundação das vilas e arraiais que vão dar origem as principais cidades da região.

Também direto dos livros da história para o romance de Frei Beto está a famosa Guerra dos Emboabas, uma série de conflitos armados entre paulistanos e portugueses pelo controle das minas e das atividades econômicas na região entre 1707 e 1709, quando a Coroa e governo eram tão distantes dos moradores da região, quando a lei e a fortuna.
Na descrição do autor, a “guerra era, de fato, uma disputa entre o negociante e o minerador. Mediam ferros, de um lado, a gente descalça de Borba Gato, os bandeirantes, a indiada iletrada, os negros cavadores de minas; do outro, reinóis, oficiais de El-Rey, baianos, comerciantes, agricultores, pecuaristas, e escravos mineradores liderados pelo genioso Nunes Viana”.

Os emboabas, apelido pejorativo dado aos portugueses por usarem calçados e roupas enfeitadas (algo como pinto calçudo) derrotaram os paulistas na batalha campal de Cachoeira do Campo, nas proximidades de Ouro Preto, nomearam Nunes Viana governador das Minas, desarmaram e expulsaram os paulistas da região.
Derrota que se tornou definitiva depois que as tropas emboabas comandadas por Bento do Amaral Coutinho, cercaram, capturaram e depois executaram cerca de 300 paulistas no episódio que entrou para a história como o Capão da Traição. O evento também é narrado no romance de Frei Beto que coloca mais um descendente dos Arienim bem no centro dessa confusão.

Hoje quem caminha pelos paralelepípedos da Praça Tiradentes, visita o Palácio dos Governadores, se impressiona com a beleza da Igreja de São Francisco e com a riqueza das peças do museu de arte sacra da Igreja de Nossa Senhora do Pilar ou vai prestar sua homenagem aos mártires da Inconfidência Mineira no prédio da antiga Cadeia e Câmara, que hoje abriga o Museu da Inconfidência, certamente não se lembrará da odisseia que foi trasladar aquele universo europeu para a densa mata atlântica brasileira.
Desse choque entre a cultura europeia e a rudeza dos sertanejos brotou a poesia parnasiana de Tomás Antônio Gonzaga, a arte barroca de Aleijadinho e a deliciosa comida mineira, que pode e deve ser saboreada nos vários e bons restaurantes da cidade na companhia da não menos deliciosa cachaça de Salinas.

A Ouro Preto de hoje é mais que o patrimônio mundial declarado pela UNESCO. É uma cidade cheia de vida, jovem e coalhada de estudantes. Seu carnaval é um dos mais animados das Minas Gerais e nas noites da cidade são inúmeros os bares e botequins com música de qualidade ou festas animadas. Para os realmente jovens (no corpo e no espírito), tem sempre a opção das festinhas nas repúblicas universitárias que costumam varar as madrugadas com muita animação.
Da minha parte, prefiro os passeios diurnos, as visitas às igrejas, museus, às antigas áreas de mineração, um passeio até Mariana e que tais.

Se o tempo permitir, na volta para BH, vale a pena passar por Congonhas do Campo. A esplanada em frente ao Santuário do Bom Jesus de Matozinhos, com as maravilhosas esculturas em pedra sabão dos 12 profetas de Aleijadinho, nos dá a certeza de que, assim como os argonautas, os bandeirantes e emboabas também foram guiados pelas mãos nem sempre gentis dos deuses das artes e da fortuna.

domingo, 22 de setembro de 2013

Desde 1869, vale perguntar: Que País é esse?


A semana se encerra com o País perplexo e indignado diante da decisão do STF de aceitar os embargos infringentes dos réus do mensalão. Porém, esta indignação não deve esconder o fato de que nosso país sofre com a fragilidade de suas instituições e, paradoxalmente, também se ressente quando as instituições e seus regramentos são pouco flexíveis. O mesmo brasileiro que cobra a pena rígida defende o famoso jeitinho.

Essa contradição nas nossas relações com as instituições não é fato novo nem recente, podemos encontrar exemplos nos mais variados eventos de nossa história: na Colônia, na Corte no Rio, no Império, nas repúblicas e até nas poucas guerras que participamos. Desde sempre esse Brasil sem segurança institucional, assentado em heróis inventados, macunaímas e jeitinhos está presente.
Em 1869, Alfredo Maria Adriano d'Escragnolle Taunay, o visconde de Taunay, produziu um dos melhores, talvez, o melhor relato da participação brasileira na Guerra do Paraguai. Seu livro, A Retirada da Laguna, é tão emblemático do momento que estamos vivendo que merece ser lembrado.

A Retirada é, por definição, um épico às avessas! Bem ao feitio de um país que só pode ser entendido se analisado às avessas.
Escrito em prosa de grande qualidade, o livro narra um dos maiores fracassos militares da campanha paraguaia do Brasil. Ainda assim, no meu período nos bancos escolares tal evento foi transformado em feito de grande heroísmo nacional: uma fuga vitoriosa!?

Na campanha retratada por Taunay, como nos eventos recentes, não há heróis, são escassas as cenas de nobreza, de denodo, de caráter ou audácia. Com algum esforço, talvez pudéssemos considerar o guia Francisco Lopes o herói de uma guerra pela sobrevivência por ter conseguido achar o caminho de volta quando todos estavam perdidos.

Desde o início a desorganização, o despreparo, o desconhecimento sobre as terras onde iriam combater e a precária logística apontavam para uma ação militar fadada ao fracasso, sob do comando do Coronel Carlos de Moraes Camisão.

O Coronel assume o comando sob suspeita. Considerado pusilânime e covarde, especialmente depois de sucessivos adiamentos da partida da Coluna, ele espera recuperar sua imagem na campanha. Sempre indeciso e hesitante, o Camisão descrito por Taunay nos leva a perguntar como tal homem pôde ser designado para a tarefa? Que Exército era aquele? Que Império era aquele?

A Coluna, com 1680 homens, saiu da Colônia Militar de Miranda em 11 de janeiro de 1867 chegando a Nioaque 13 dias depois. A pequena vila, com poucas casas, uma igreja e um quartel para quinhentos homens abrigou a tropa por um mês enquanto tentavam estabelecer as linhas de suprimento, já que desde o anúncio da partida a tropa não tinha o suficiente para se alimentar, nem tinha a retaguarda como garantir o seu abastecimento. 

Pouco depois de Nioaque, ao se aproximar de território ocupado pelos paraguaios, ocorre o primeiro encontro com o inimigo. No momento em que os soldados esperam investir sobre os paraguaios, Camisão hesita e não ordena o ataque. Taunay ironiza o comandante ao explicar que a decisão de não atacar se devia aos escrúpulos de Camisão uma vez que “estávamos na Sexta-Feira Santa, e a iniciativa de uma ação sangrenta no dia da morte do Salvador repugnava a um coração religioso como o do nosso chefe”.

Assim, a primeira vitória da Coluna é a conquista do Forte de Bella Vista em 21 de abril. Menos de uma semana depois, um destacamento formado por soldados e índios Guaicurus e Terenas ocupa e incendeia o forte paraguaio Rinconada. 

Com poucos mantimentos, o Coronel resolve avançar Paraguai adentro, chegando à Fazenda da Laguna, onde são cercados pelos adversários. A partir daí a situação começa a se agravar e no dia 8 de maio o exército brasileiro começa a retirada com perdas significativas de armas e homens. 

Depois de cruzar o rio Apa, na Bela Vista brasileira, a coluna sofre duro ataque inimigo com muitos mortos e feridos. Seguindo em fuga, atordoada pela fome e pela pressão do inimigo, que incendeia as matas em volta dos acampamentos dos brasileiros, sofrendo com as condições do caminho, a tropa se vê perdida e sem mantimentos.

Não bastassem as dificuldades, o cólera começa a abater mais e mais soldados e a coluna entra em desespero, até que o guia Lopes consegue se localizar e retoma a marcha em direção à sua fazenda, cruzando o riacho Cambaracê, onde os doentes foram abandonados à própria sorte. No final do dia chegam aos currais da Fazenda Jardim com o Comandante, o Sub-Comandante e Guia também atacados pela doença. 

Na fazenda do Guia Lopes ficaram, sepultados, além do proprietário, o Coronel Camisão, o Tenente Coronel Juvêncio e vários desconhecidos. Nosso único herói morre cumprindo a promessa de levar a coluna ou o que dela restasse de volta ao Brasil e dar abrigo na segurança de sua própria fazenda. Mas os paraguaios continuam por perto. 

Em 3 de junho o grupo chega a Nioaque para encontra-la saqueada, com cadáveres espalhados por todo lado. No dia seguinte há a explosão da igreja da vila e a tropa só consegue se livrar do inimigo depois de transpor o rio Taquarussu. Em 11 de junho, o que restou do contingente brasileiro chega a Porto Canuto, às margens do Rio Aquidauana, encerrando as operações de guerra, com a perda de 698 soldados, além de grande número de índios, mulheres, comerciantes, paisanos e garotos de serviço que os acompanhavam. 

Por conta do trabalho e depois, por lazer, conheci a região onde se desenrolou toda a fuga. Partindo de Campo Grande, capital do Estado, toma-se a rodovia em direção a Sidrolândia e de lá para Nioaque. A cidade que abrigou a coluna por quase um mês ainda guarda algumas referências históricas do movimento em torno de sua praça e da sua igreja matriz. O quartel militar ainda estava lá, claro que moderno e reformado, mas pouco demonstrava da importância que teve para a história do Exercito brasileiro.

De lá segui oeste, rumo ao Paraguai cortando a região de belíssimas paisagens do peripantanal. Entre Nioaque e Porto Murtinho, fronteira com o Paraguai, estão os municípios de Bonito e Jardim muito frequentados pelos que gostam do turismo de aventura ou do contato com a natureza. Nas vizinhanças também está a cidade de Guia Lopes da Laguna, homenagem ao herói da retirada. 

Na região, além dos hotéis, pousadas e restaurantes que fazem de Bonito uma cidadezinha com muitos atrativos, os mergulhos nas águas frias e cristalinas do Rio da Prata, o rapel no abismo Anhumas, as trilhas pelas cachoeiras ou a visita à Lagoa Azul, são passeios imperdíveis aos com disposição para aventura. 

Os realmente aventureiros podem optar por incursões mais longas pelo do pantanal sul matogrossense, fazendo trilhas de grande duração, acampando em fazendas da região. Pessoalmente minha veia aventureira vai até escurecer. Ao cair da noite gosto de voltar para o conforto do hotel, tomar uma cerveja gelada ou uma caipirinha e jantar bem. Isto sem falar do banho para relaxar. 

Os que têm paciência para a pesca devem seguir para Porto Murtinho, com seu peculiar dique, que cerca o centro urbano e o protege das águas volúveis do Rio Paraguai. Ali o rio é muito piscoso e a cidade é um centro para turismo de pesca, recebendo visitantes de todo o país, com oferta de barcos, equipamentos e guias. Quando estive por lá, havia um cassino – se é que poderia receber esse nome – que funcionava em uma das ilhas do lado paraguaio, hoje em dia não sei se ele ainda existe, mas também não acho que seja razão para rodar tantos quilômetros.

Naquela época sugeri aos governantes de então que procurassem uma estratégia de desenvolvimento para a região que juntasse ao potencial do ecoturismo, que estava em fase embrionária de exploração, a importância histórica da área, por conta da famosa Retirada da Laguna. Olhando na internet a divulgação do turismo no estado percebo que muito pouco ou quase nada se fez com esta intenção. Mas para que criar uma atração turística em torno de um fracasso militar?

Quem sabe para dignificar as mais de mil pessoas que morreram na campanha.

Quem sabe para nos perguntarmos mais uma vez: Que guerra foi essa? Que Brasil é esse?

sábado, 14 de setembro de 2013

Tradições nas Terras Altas...


Outro dia estava no Fortim, aqui no Ceará, na casa do meu amigo Dr. William curtindo a maravilhosa vista da foz do Rio Jaguaribe e conversando sobre política, quando me deparei com um livro do Hobsbawm de sua biblioteca. Como gosto do autor, não me contive e acabei tomando o volume emprestado.

Ao contrário do que pensei, o historiador Eric Hobsbawm não é o autor do livro A Invenção das Tradições, mas o organizador de uma coletânea de artigos produzidos por vários historiadores discutindo hipóteses de como se formam as tradições e, conforme ele explica, como muitas daquelas que acreditamos serem ancestrais são recentes e criações da própria modernidade. Já o primeiro artigo, A invenção das tradições: a tradição das Terras Altas da Escócia, de Hugh Trevor-Roper trata, me fez lembrar a viagem que fiz para aquelas bandas.

Em um dia que amanheceu frio e chuvoso saímos de Glasgow com destino à cidade de Inverness, capital das terras altas e cidade mais ao norte da Grã-Bretanha. A viagem certamente teria sido melhor apreciada se o dia estivesse ensolarado e luminoso, mas mesmo debaixo de nuvens cinzas e uma chuva renitente pudemos apreciar a beleza das Lowlands e a transição para a porção mais alta e mais ao norte do Pais.
Ali as paisagens se transformam, o verde exuberante se converte em uma cobertura rala e marrom e o cenário parnasiano dos arredores de Glasgow e Edimburgo dá lugar a uma paisagem mais hostil e selvagem. Nem por isso o contraste entre as montanhas, as rochas imponentes, os riachos pedregosos e a vegetação da tundra deixam impressionar pela beleza. É uma terra de horizontes vastos e grandes vazios. Inóspita ao primeiro olhar, mas que aos poucos vai revelando suas belezas e suas facetas mais agradáveis.

Chegando ao nosso destino não podíamos deixar de visitar, imediatamente, a principal atração daquelas paragens – pelo menos para nós estrangeiros – o famoso Loch Ness. O lago, com mais de 35 quilômetros de extensão, é de uma beleza impar e o contraste de suas águas escuras e profundas com as montanhas e pastagens do seu entorno fazem valer sua fama internacional.
Mas em um dia com ventos de um frio cortante, chuvas eventuais e pouco sol, nem mesmo o famoso monstro do lago ousou sair de sua caverna e não deu o ar da graça. Mas certeza que ele estava por lá nos vigiando!

Não tendo sucesso na observação da personagem mais famosa da região, retornamos para a capital das Terras Altas. Inverness é uma cidade pequena (70 mil habitantes) e sem grandes atrativos, além do Lago e dos velhos castelos às suas margens. Ainda assim, caminhamos pelas ruas centrais da cidade e subimos para conhecer o seu castelo, que ainda tem uso administrativo atualmente e é um local de onde se tem uma bela vista da cidade espalhada ao longo do Rio Ness. Nada que justificasse as quase 3 horas de viagem, mas ainda assim, bonitinha.
Convencidos pela praticidade do Vicente e da Marília acabamos almoçando no McDonalds (!!!!!!), franquia americana que globalizou o nome de um dos mais tradicionais clãs escoceses, os MacDonalds, que dominaram o oeste da Escócia e o norte da Irlanda no final da Idade Média, antes de virarem sinônimo de fastfood.

Os tradicionais MacDonalds, segundo Trevor-Roper, jamais usaram os famosos kilts e as gaitas de fole que tão marcantemente associamos à Escócia e suas mais profundas tradições. Ao contrário!
No seu artigo, o autor defende que o kilt, os tartans de padrões diferenciados e a própria gaita de fole são uma tradição escocesa inventada há pouco tempo, tão recente como a segunda metade do século XVIII. E, mais grave: o inventor da moda foi um INGLÈS!!!!!
De acordo com o autor, antes da unificação das coroas, em 1707, o traje tradicionalmente usado pelos populares escoceses das terras altas era um manto de peça única com um cinto que o amarrava e se chamava breacan. Já os nobres de então, imitavam os costumes das classes mais abastadas de Edimburgo e usavam calças compridas justas e axadrezadas denominadas trews.
O kilt que hoje conhecemos foi inventado por um Quaker inglês de Lancashire, denominado Thomas Rawlinson cuja família controlava fornos de fundição e forjas na Inglaterra e que, em 1727, fez um acordo com Ian MacDonell, chefe do clã MacDonell de Glengarry, arrendando umas florestas perto de Inverness para extrair madeira e posteriormente construir um forno para o refino de ferro.

Quando Rawlinson percebeu o manto com cinto usado pelos highlanders era incomodo e desajeitado para o labor na forja e na floresta, resolveu simplificar a vestimenta, adequando-a ao trabalho. Criativo, desenhou um uniforme em que separava a parte de baixo da túnica da parte de cima que eles usavam também como capa. Criava assim o feliebeg (saia curta com as pregas já costuradas), que de tão prática e acessível logo se espalhou por todas as Terras Altas, isto por volta de 1730!!!
O autor faz questão de frisar que o kilt, nome que popularizou o feliebeg, não era a vestimenta dos nobres e proprietários de terras ou dos chefes de clãs, mas sim de seus criados e trabalhadores braçais. Logo, o tecido utilizado, tanto das mantas antigas, como dos novos kilts, não eram os hoje famosos tartans multicoloridos, mas sim, tecidos de cores cruas, próximas ao marrom, que eram mais baratos e, por conseguinte, não tinham qualquer relação de identidade com a pessoa ou o clã a que pertenciam.

Depois da rebelião dos highlanders jacobitas em 1745 o Rei da Inglaterra, como parte de estratégia de desorganizar a cultura das terras altas e fazer valer os domínios da Coroa resolveu, entre outras coisas, proibir o uso das vestimentas tradicionais da região. Assim breacans, trews, kilts e outros trajes dos montanheses tornaram-se peças excluídas do guarda-roupa da região, sob pena de prisão e deportação para quem contrariasse a norma.

Outra resposta do Rei ao movimento rebelde foi a implantação dos primeiros regimentos militares britânicos nas Terras Altas, ocupando a área e canalizando para o exército oficial o espirito guerreiro dos highlanders. Curiosamente esses soldados mantiveram a permissão de usar as roupas proibidas, incluindo os modernos kilts, que logo se popularizaram. Para se diferenciarem entre si cada regimento passou a adotar um padrão de tartan. Ou seja, seu uso era restrito aos militares e não tinha qualquer relação com as famílias tradicionais do norte da Escócia. Estas, se adaptando aos regramentos reais, preferiam usar roupas que imitavam os padrões vigentes na corte inglesa ou entre os ricos e famosos de Edimburgo.
Foi somente no final do século XVIII, influenciados pela teoria do bom selvagem de Rousseau, que os intelectuais escoceses adotaram uma nova perspectiva em relação aos brutos extravagantes das terras altas do norte e passaram a considera-los como representantes da mais arraigada tradição daquele povo. Logo, sociedades se formavam para valorizar a tradição escocesa das Terras Altas em Londres, Edimburgo e outros centros, tendo intelectuais e eruditos nascidos naquele país à sua frente.

A tradição ancestral do kilt virou verdade absoluta quando, em 1822 (!!!), o Rei Jorge IV resolveu visitar a capital escocesa. Sir Walter Scott, um dos maiores intelectuais do país, fica incumbido de organizar a cerimônia de recepção do mandatário e se propõe a fazê-lo resgatando e valorizando o mais tradicional de sua terra. Para tanto, escreve a todos os chefes de clãs das terras altas convidando-os a virem receber o rei vestindo suas agora tradicionais vestimentas.

A empresa inglesa Wilson & Son de Bannacknoburn, que há anos produzia os tecidos de tartan, vê nesta ocasião excelente oportunidade de negócio e, com chancela da Sociedade das Terras Altas em Londres, cria um catálogo que relaciona um padrão de cor do tecido a uma determinada família ou clã.
Os produtos dos Wilson vendem que nem água e no dia da cerimônia a capital escocesa é invadida por milhares de homens trajando aqueles vestidinhos estranhos coloridos. Até o Rei adere à moda e aparece vestido como um tradicional escocês das terras altas, para delírio de muitos e constrangimento de alguns.

Lorde Macaulay, montanhês de estirpe, mesmo reconhecendo alguma antiguidade na vestimenta, achava que esta absurda modernidade havia “atingido um ponto além do qual não poderia mais ir. O último rei britânico que manteve uma corte em Holyrood julgou que não poderia dar prova mais definitiva de seu respeito pelos costumes que prevalecem na Escócia desde a União do que fantasiar-se com um traje que, antes da União, era considerado por nove entre dez escoceses como roupa de ladrão”.
Não posso negar que a tese defendida e bem fundamentada por Trevor-Roper me deixou cabreiro com relação à ancestralidade das tradições escocesas e suas origens célticas, mas isto não diminuiu em nada o prazer que foi conhecer aquele país e aquele povo.

Para os amigos que forem para o norte da ilha, deixo uma sugestão: se não dispuserem de tempo de sobra na sua viagem, não precisam ir até Inverness para ver a tradição das terras altas. Invistam seu tempo em Glasgow e Edimburgo que oferecem aos visitantes o tradicional, o histórico e o que há de mais moderno naquele belo país. E divirtam-se com os espetáculos de rua proporcionados por escoceses tradicionais com vestimentas talvez nem tão tradicionais assim.

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Em tempos de Francisco...




A visita do Papa Francisco I ao Brasil tornou a religião Católica e as questões de natureza religiosa tema recorrente em todas as mídias. Assim, não podia perder a oportunidade de falar sobre leitura e viagens relacionadas ao homem que inspirou o Cardeal Jorge Mario Bergoglio na escolha do seu nome como sucessor de Pedro.

São inúmeros os livros, textos e filmes que tratam da vida do criador da ordem dos frades menores. Quem não assistiu Irmão Sol, Irmã Lua ou não escutou músicas e referências ao papel revolucionário que Francisco de Assis teve para a Igreja Católica durante o século XI e que ainda tem.

Recentemente tive a oportunidade de ler o interessante livro São Francisco de Assis – O homem por trás da lenda, de Augustine Thompson. Mais que um texto romanceado sobre a vida do famoso santo, neste livro, o autor, que é um padre dominicano com Doutorado em História Medieval, procura, com base em uma séria pesquisa histórica, retratar da melhor maneira possível a vida de Francisco e a Europa em que ele vivia, no intuito de separar a história da lenda.

Nesta trilha ele nos apresenta a família de Francisco em Assis e como devia ser a vida social de uma cidade na península italiana daquela época, com suas guildas, suas festas e como seria a vida “dissoluta” do jovem Francisco, filho de comerciantes emergentes e com dinheiro naquela cidade, no capitulo “Quando andava em Pecados”.


Com base nas informações e dados disponíveis ele narra a fracassada experiência militar de Francisco na batalha de Ponte San Giovanni, mais um capítulo da guerra entre Assis e Perugia durante o século XI, quando nosso futuro santo caiu prisioneiro das hostes inimigas e assim permaneceu por quase um ano até que sua família pagasse o resgate e de como – aí especulação do autor – esta experiência frustrada pode ter sido decisiva para que Francisco di Bernardone abandonasse os sonhos de se transformar em heróico cavaleiro e se encaminhasse para uma vida mais espiritual.

Do mesmo modo o autor tenta explicar – a partir da compreensão de como se organizava a sociedade da época – a famosa história do abandono da família e da opção pela pobreza como resultante do desinteresse de Francisco pelas coisas mundanas e o medo, de seus pais, que sua dedicação à caridade e à recuperação de igrejas e pequenos templos pudessem arruinar a fortuna tão duramente conquistada.

Entre outras coisas, o autor desmistifica a crença de ser Francisco o autor da famosa Oração da Paz – aquela do “Senhor fazei-me instrumento de vossa paz” – entendendo de que dificilmente um homem do seu século colocar-se-ia em outra posição em relação ao Senhor que não fosse de obediência, de objeto da vontade divina, não em sujeito de transformação. Ainda de acordo com Thompson, fontes históricas apontam que a oração foi composta originalmente em francês por autor desconhecido e datada do início do século XX, de 1912 para ser mais preciso.

O autor também explora o sofrimento de Francisco devido à contradição que nascia, necessariamente, de um homem que queria ser o menor dos menores, mas era, ao mesmo tempo, o líder de uma congregação que se iniciara com poucos seguidores em Porciúncula e que quando já estava perto do fim de sua vida havia sido reconhecida por Papas e Bispos e atraia milhares de religiosos que olhavam para ele como um líder, aquele que estaria acima de todos e os guiaria. Como um maior podia ser menor?

De acordo com a narrativa de Thompson, Francisco sofre com este paradoxo, enquanto desfilam pelo texto outros santos conhecidos da história da Ordem, como Santa Clara e Santo Antônio de Pádua e outros que forjaram os franciscanos como eles hoje são.

Ficamos sabendo, entre outras coisas, que Antônio de Lisboa (depois de Pádua) só tem sua sólida formação aproveitada pela ordem depois que Francisco revê as suas regras e o Papa Honório III baixa o regramento que possibilita que seus seguidores possam ambicionar aprender mais e crescer na carreira eclesiástica. Inicialmente tal aspiração era vista por São Francisco como manifestação de orgulho e uma ambição inadequada para quem se propunha a ser um frei menor.

E Antônio, vindo de Lisboa, tem papel fundamental na organização desta faceta “erudita” da Ordem. Ele, primeiro Doutor em Religião entre os Franciscanos, é culto, educado e excelente orador e vai, com os anos, mesmo depois da morte de Francisco, ganhando posição de mais e mais destaque junto aos seus pares.

Assis e Pádua distam, uma da outra, pouco mais de 360 quilômetros que podem ser feitos por belas paisagens, passando pela cidade de Bolonha na direção do Veneto. Estive nessas duas cidades no inverno de 2012, um dos mais rigorosos dos últimos anos na Europa - até em Roma nevou, coisa que fazia 25 anos que não ocorria - com os prós e contras de viajar no frio e na neve.

Não ficamos em Assis. Preferimos nos hospedar em Perugia em um excelente hotel em seu centro histórico, nas imediações da Piazza de Italia. Como chegamos a noite, com muito frio, no primeiro momento apenas pudemos apreciar a neve que cobria a cidade e um excelente restaurante local que foi indicado pelo concierge e que ficava nas imediações. Diante do frio que fazia o vinho tinto da Úmbria fechou com chave de ouro o primeiro dia na Itália.

O dia seguinte amanheceu esplendoroso, com um céu azul e um sol radiante que dava mais beleza ao contraste entre a arquitetura antiga do centro da cidade e a brancura da neve que havia caído durante a noite. Fazia frio, mas isso não nos impediu de fazer uma bela caminhada ao longo do Corso Pietro Vannucci, partindo da praça e seguindo na direção da Catedral, com direito a fotos na Fontana Maggiore e nas escadarias do Pallazzo dei Priori que fica ali defronte. O passeio foi mais que agradável, mas como o tempo era escasso, pouco depois do meio dia estávamos de novo no carro, agora rumo a Assis.

 A pequena cidade murada nos recebeu praticamente vazia, não sei se por conta de ser dia de semana ou se por conta do frio que fazia. Depois de achar com facilidade um lugar para estacionar o carro, logo fora das muralhas, seguimos diretamente para a Basílica de São Francisco de Assis que se encontrava igual e surpreendentemente vazia. Aqui e ali um peregrino, um pequeno grupo de turistas ou um franciscano aparecia para fazer uma oração ou para reverenciar o santo da casa.

A basílica, cuja construção começou logo depois que Francisco foi canonizado, lá pelo século XIII, é hoje um prédio de grandes dimensões, compreendendo a duas igrejas e a cripta, que guarda os restos mortais do santo. Apesar dos inúmeros afrescos e outros trabalhos de arte que a decoram o complexo religioso, a minha sensação foi de que aquela igreja não era compatível com o santo que eu esperava encontrar em Assis. Mesmo quando desci à cripta, ainda me pareceu que havia um descolamento entre o ambiente e a mensagem, algo grandioso demais para o santo que queria ser o menor dos seguidores de Cristo, não que fosse luxuosa, mas me pareceu grandiosa e acética. Distante! Algo parecido com o que senti quando visitei Fátima, mas isto é outra viagem.

De lá saímos caminhando pelas ruas tortuosas da cidade murada, pelas ladeiras cheias de lojinhas, que vendem todo o tipo de souvenires de São Francisco, Santa Clara e a da cidade. Passamos pela antiga praça do fórum da cidade romana de Asisium, hoje Piazza del Comune, para admirar o antigo templo de Minerva, depois convertido na igreja de Santa Maria sopra Minerva. Ali entramos em uma lanchonete e comemos qualquer coisa. A ideia era que o dia rendesse ao máximo, pois nosso próximo destino era a Basílica de Santa Clara, no extremo oposto da cidade.

Na igreja devotada a Santa Clara a mesma sensação. Pouca gente, pouco calor – realmente fazia frio. Uma sensação completamente diferente daquela que senti quando entrei na Basílica de Santo Antônio de Pádua, o frade português que depois juntar-se à Ordem dos Frades Menores veio a se converter, assim como seu líder, em um dos santos mais adorados da religião católica.

Dias depois de Assis estávamos em Pádua, cidade eleita como base para as incursões pelo Veneto. Depois da experiência pagã de acompanhar o carnaval veneziano e brindar com um Brunello a noite de sábado na Piazza San Marco, o dia seguinte amanheceu frio e nublado, convidando a ficar ali mesmo pela cidade-base.

Como o hotel ficava fora da cidade murada, convenientemente perto da rodovia para facilitar os deslocamentos, fomos de carro até o centro da cidade, paramos no estacionamento do Pratto de la Valle, uma enorme praça elíptica no centro da cidade, que naquele dia recebia uma feira de antiguidades. Depois de comprar algumas cédulas e moedas antigas para a coleção, seguimos na direção da Basílica.

Uma leve garoa começou a cair aumentando a sensação de frio e aceleramos o passo para chegar à igreja.

Quando entrei na Basílica a sensação foi completamente oposta da que havia experimentado em Assis. Era hora da missa e a nave principal estava lotada. Não só os cânticos e a celebração da missa eram envolventes, mas havia naquele momento uma sensação de conforto que – mesmo para alguém que não é muito dado a questões espirituais – era mais que o mero conforto físico.

O ambiente da basílica – o calor, as pessoas, as vozes, as imagens, as sensações – acalmavam corpo e espírito e, ainda que ir ver a língua do Santo que está ali exposta seja uma experiência diferente, por assim dizer, não posso negar que naquele momento tive uma experiência transcendental.

Em Pádua me senti mais perto de entender o ideal franciscano e o poder transformador da entrega espiritual, coisa que não encontrei em Assis, em nenhum momento. Tudo bem que a neve nos impediu de visitar a Porciúncula, o que talvez tivesse possibilidade um encontro de igual natureza, mas a experiência da Basílica ainda estava comigo mesmo quando estava do lado de fora tirando fotos em frente a estátua equestre produzida por Donatello do famoso condottieri Erasmo de Narni, vulto Gattamelata .

Mas Pádua tinha mais a oferecer!

Sede da segunda universidade mais antiga da Itália, perdendo apenas para a de Bolonha, a cidade tem inúmeros atrativos para os que gostam da cultura e da história da “bota”. Em especial a Cappella degli Scrovegni com os belíssimos afrescos pintados por Giotto. A pequena capela é uma das principais atrações turísticas da cidade e, com certeza, vale a visita e a espera, uma vez que só se entra em visita guiada, com número restrito de visitantes e depois de uma série de controles de temperatura e biologicos para evitar que as pinturas se deteriorem.

Nas ruelas da cidade velha também se encontram vários prédios históricos e museus – como o ótimo museu da cidade, praticamente em frente à Cappela famosa – que garantem dias de diversão e entretenimento de qualidade.

Já Assis merecerá nova visita.

Quem sabe na primavera, quando poderei passear nos campos que a cercam e que pareciam muito bonitos à distância. Visitar as pequenas capelas, caminhar pelos lugares onde São Francisco viveu e pregou e aproveitar melhor a campanha italiana com atividades mundanas como um bom vinho e uma boa mesa.

Em tempos de Francisco, nada melhor que calçar as sandálias da humildade e reconhecer que o mais provável é que o frio tenha embotado meus sentimentos do que negar a espiritualidade da terra natal de tão extraordinário homem.