sexta-feira, 31 de maio de 2013

Maria, Fernando e Sintra.


Mulheres poderosas atraem! 

Talvez por este motivo, nos últimos anos, livros que tratam da vida de mulheres com poder acompanharam muitas das minhas noites e viagens. Foram companheiras de jornada: Mary Stuart da Escócia e Elizabeth da Inglaterra, Isabel do Brasil, Isabel da Espanha, Catarina da Rússia, Catarina da França e Maria de Portugal.

Não a Louca, Maria I, mas a brasileira, a segunda, Maria Joana Carlota etc... filha de Pedro (primeiro no Brasil e quarto em Portugal) e de Leopoldina. Nascida nos trópicos e criada para ser rainha em terras europeias. Até a sua época, único chefe de estado na Europa não europeu. Hoje temos até um argentino!!!

Mas voltemos a Portugal do século XIX e a Maria II.

O livro de Isabel Stilwell, D. Maria II – Tudo por um Reino, narra a difícil vida de uma criança que foi rainha aos 7 anos de idade e que mais ou menos na mesma época foi dada em casamento ao tio Miguel, irmão de Pedro que acabou usurpando o trono português, renegando o casamento com a sobrinha e a chance de uma sucessão menos conflituosa em Portugal.

Depois de idas e vindas à Europa, onde entre outras coisas fica amiga e confidente de Vitória da Inglaterra (outra poderosa), Maria acaba assistindo o sucesso de seu pai na recuperação da coroa lusa. Dom Pedro, junto com Palmela, Saldanha e outros companheiros liberais, consegue defenestrar o irmão e ex-futuro-genro do trono para, logo em seguida, falecer no mesmo leito em que nasceu no Palácio de Queluz.
Assim, aos 16 anos Maria Joana torna-se Maria II de Portugal e, às vésperas de sua entronização, aceita em casamento o irmão de sua madrasta Amélia, segunda esposa do pai. Casamento que também acaba não se realizando pois o futuro esposo morre de difteria antes de o consumar. Aos 19 anos depois de duas tentativas frustradas de se casar, vai encontrar o marido em um casório arranjado pelo Rei Leopoldo da Bélgica com apoio de sua amiga Vitória, com o príncipe Fernando de Saxe-Cobourg-Gotha.

Ao contrário do que se poderia esperar de uma mulher do século XIX, Maria não abre mão em nenhum momento de suas prerrogativas de rainha. Nem mesmo quando nasce o príncipe herdeiro – primeiro de uma série – e que, conforme a constituição de então, Fernando deixava de ser príncipe consorte para ser Rei de Portugal, Maria II deixa de governar e conduzir a política portuguesa.
Isto em um período em que a Corte está mais que agitada, com golpes e contragolpes de Estado, gabinetes que se formam e se desfazem, movimentos militares e revoltas populares que agitam todas as cidades lusas, do Minho ao Algarve. E ela, jovem e voluntariosa, se empenha em conciliar os papéis de mãe, mulher, esposa, chefe de governo e de Estado em uma época e numa sociedade em que tudo isso fazia pouco ou nenhum sentido.

O rei bem que tenta ajudar a esposa com seu espirito conciliador e moderado, mas diante da intransigência de Maria II, por opção ou por falta dela, acaba se entregando a outra de suas paixões a arquitetura e a construção do Palácio da Pena na cidade de Sintra. Obra a que se dedica durante todos os anos como rei lusitano e que hoje é um patrimônio daquele país e uma visita mais que recomendada para todos que forem à terrinha.
O Palácio da Pena fica no alto de um belo monte, cercado por antigas fortificações de um mosteiro do século XVI e foi comprado por Fernando para começar a sua remodelagem em conformidade com seu projeto, preservando-lhe a igreja e o claustro, entre outras dependências.

De lá se tem uma vista privilegiada da cidade de Sintra e de toda a região, um conjunto de serras ricas em flores e verdes cujos sons e aromas nos remetem às bucólicas temporadas em que família real tentava escapar das escaramuças da politica cortesã.
Assim como o tempo passado pela Rainha em Sintra é uma pequena parte do muito bom livro de Stilwell, uma visita a Sintra vale não só pelo Palácio da Pena ou pelas lembranças da Corte no Século XIX. Toda a região do Conselho de Sintra merece ser visitada e apreciada.

De saída a partir de Lisboa, o viajante não pode deixar de passar pelo Cassino do Estoril e pelas casas de praia de Cascais. A estrada, a antiga não a rodovia moderna, sinuosamente vai apresentando belos trechos do litoral lusitano a cada curva ou subida, até que, lá pela altura de Colares, é necessário tomar a direita e seguir na direção da cidade destino.
Lá chegando a gente se depara com um palácio de estilo eclético, com um sem números de cômodos que Fernando foi desenhando e adaptando aos seus interesses e projetos. Não vou dizer que o estilo me agradou, a impressão que fiquei foi a de que a cada filho que o casal ia concebendo o Rei ia fazendoo um puxadinho, mas é realmente interessante. Por um lado perde em estilo, por outro faz com que seja um palácio com ares de residência. Assim como o casamento de Fernando e Maria, ainda que arranjado, segundo a autora, nunca foi de fachada.

Além do Pena, o Palácio de Queluz também está nas proximidades para ser visitado, o Castelo dos Mouros também e outros vários palácios da nobreza portuguesa que se instalou na vila nos seus anos dourados podem fazer parte do passeio.  É uma oportunidade para conhecer a capital romântica de Portugal, já que seu centro histórico preserva interessantes representações do movimento romântico no país.
Também vale uma caminhada pelas ruazinhas da vila, com aquela tranquilidade característica das cidades onde as pessoas controlam o ritmo de suas vidas e não ao contrário. Não se deve perder a chance de experimentar as famosas queijadas, doce típico da região (confesso que doce demais para o meu paladar) ou comer um leitão ou um cabrito, ótimas opções para um almoço relaxado, tomando um vinho do Douro ou mesmo um alentejano, ainda que eles recomendem um da vizinha Colares.

Na volta, uma parada na praia do Guincho para apreciar o por do sol é uma recompensa para a alma e uma oportunidade para esticar as pernas. Faça isso tomando um cálice de vinho do porto para encerrar o passeio, fazendo, quem sabe, o mesmo trajeto que Fernando e Maria faziam há mais de 150 anos, deixando para trás os momentos de tranquilidade e regressando para as atribulações da cidade de Lisboa.

sábado, 25 de maio de 2013

Príncipe da Neblina em Gales?



É curioso como ler e viajar provocam associações aparentemente despropositadas ou sem conexão. Às vezes uma personagem ou o cenário de um conto ou romance nos levam a lugares que, ainda que nunca tenhamos estado, parecem fazer parte das nossas lembranças. Mais curioso ainda é, quando do nada, onde menos esperamos, aquela pessoa ou aquela paisagem surge, nos remetendo à memória de lugares nunca visitados e de pessoas nunca vistas.
Recentemente li O Príncipe da Neblina, primeiro livro de Carlos Zafón, dos que li, ambientado fora da sua querida Barcelona. Nele, o autor, conta a estória de Max Carver, um adolescente inglês que por conta do trabalho do pai – que é um relojoeiro – se vê obrigado a ir morar em uma pequena vila de pescadores no litoral da Inglaterra.

Ali, aproveitando as férias de verão, passeando pela praia, andando de bicicleta e descobrindo a nova cidade, Max trava amizade com Roland, jovem morador local, que tem mais ou menos a sua idade e que em conjunto com sua irmã, Alicia Craver, formam o trio em torno do qual viveremos aventuras, bem dentro do realismo fantástico de outras obras do autor.
O Príncipe da Neblina é uma personagem misteriosa, que surge e desaparece nas brumas, quase sempre associada à presença do circo ou de um daqueles parques de diversão, com feiras de variedades, pipoca, roda gigante, carrosséis, shows da mulher barbada e coisas do gênero. Em uma hora ele é o apresentador do circo, noutra um adivinho que lê o futuro das pessoas ou o proprietário do empreendimento. Independentemente, ele está ali sempre na neblina, surgindo e desaparecendo ao sabor das promessas feitas e de dívidas a serem cobradas.

O príncipe também aparece naquela pacata e bucólica vila de pescadores, junto com um intrigante cemitério de estátuas nos fundos da casa dos Carver, para cobrar uma dívida de muitos anos atrás. Dívida esta que, juntos com os adolescentes e com as informações tiradas a fórceps do avô de Roland, vamos descobrindo ao longo do caminho, sempre com o circo, o cemitério e os relógios reaparecendo.
O livro, bastante juvenil, é curto, direto e prende o leitor neste esforço de ajudar as personagens principais a descobrir o que quer o príncipe da neblina e a escapar de suas ameaças, de modo a só parar de lê-lo ao terminar. Apesar disto, dos livros que li do autor, achei o mais fraquinho.

Mas toda essa estória me veio à lembrança quando ao fazer uma curva em uma pequena estrada no sudoeste do País de Gales me deparei com aquela paisagem. Ali estava a vila de pescadores que havia imaginado quando li o livro, lugar que já conhecia sem nunca ter ido!!
A beleza singela da praia não muito grande nem muito larga, especialmente se comparada com os padrões do litoral do nosso Ceará; as casinhas, muito próximas uma das outras, de frente para o mar e acompanhando a estradinha de corta a vila; as pastagens das propriedades no entorno, que fazem com que o verde praticamente se junte ao azul do mar provocando um contraste de grande beleza, em algumas delas os carneiros estão pastando mansamente à beira mar; e, os ventos frios que sopravam, eram absurdamente familiares.

Tive a sensação de poder assistir, de camarote, todo o desenrolar do livro de Zafón bem ali, à minha frente, naquela pequena vila à beira mar no litoral do sudoeste do País de Gales. Seria a perfeita a situação de “dejá vu”, se nas imediações existisse um velho farol e um cemitério com estátuas completando o cenário (eles estavam um pouco mais adiante).
Tínhamos passado por Cardiff – cidade muito simpática, cujo castelo merece uma visita – e seguíamos na direção de Saint Davis, reconhecida como a menor cidade da Grã Bretanha. A cidadezinha no extremo oeste de Gales abriga uma catedral e um mosteiro que foram fundados pelo próprio santo há mais de mil anos e que impressiona pelo seu porte e sua beleza. O mosteiro já está em ruínas, mas a catedral funciona regularmente e o seu interior é grande beleza.

Aos que um dia aceitarem o convite de ir por lá, não deixem de reparar o teto de madeira trabalhada da nave e no Cristo de madeira que o ornamenta, verdadeiramente primoroso.
Depois de visitar o legado de Saint Davis seguimos para Fishgard onde deveríamos tomar o ferry para atravessar para a Irlanda, a caminho de Dublin. Porém, por conta de erro de planejamento, quando chegamos ao porto a barca já havia partido e a próxima só sairia 12 horas depois.

Fazer o que? Compramos uma passagem para um ferry que sairia horas depois de Holyhead no norte do País de Gales e nos obrigamos a fazer uma viagem de 170 milhas por paisagens de grande beleza, sempre ao longo da costa ocidental da ilha britânica. Apesar do stress e do cansaço, a viagem forçada nos permitiu conhecer o país de leste a oeste e de sul a norte, até que no fim do dia chegamos ao nosso destino na capital irlandesa.
Durante todo o percurso, aqui e ali outras vilas de pescadores apareceriam – algumas talvez até reprodução mais fidedigna daquela imaginada pelo autor – mas a primeira foi a que causou esta sensação de viajar com livros.

Interessante que nem este livro de Zafón, nem o País de Gales devem estar nas listas dos mais cotados de leitores e viajantes mas, havendo a oportunidade, não deixem nem de ler o Príncipe da Neblina, nem de conhecer o País de Gales. Vale a pena!

sexta-feira, 17 de maio de 2013

Próxima Estação, Paris. Aí é covardia!


Não que o livro de Loránt Deutsch o coloque como candidato ao Prêmio Nobel de Literatura ou algo que o assemelhe. Não, não é essa a covardia que estou falando.

Talvez devesse dizer: aí é moleza demais!
Um blog que trata de livros e viagens falar sobre um livro que é quase um guia para viajantes é covardia! Mas hoje me é conveniente.

Para aqueles que pretendem ir a Paris pela primeira vez talvez o livro não seja recomendado, a não ser que você seja um aficionado por história. Caso contrário, deixe o Próxima Estação para sua próxima viagem à capital francesa.
Entrementes, se perca nos intermináveis metrôs da Cidade Luz; vá ao Palácio de Versailles e se apaixone nos seus jardins; suba a Torre Eiffel e caminhe pelo Campo de Marte até a École Militaire; vá para um promenade nos Champs Elysées e jante uma pizza em uma de suas esquinas brindando o Arco do Triunfo e a felicidade de viver aquele momento; tome um vinho nacional (!!) em um café na calçada para poder contar para os amigos; experimente os maccarone da Angelina enquanto passeia pelas Tulherias; se assuste com os gárgulas de Notre Dame ou se impressione com sua missa no domingo pela manhã; se decepcione com a Mona Lisa no Louvre (é só esse quadrinho?!), mas só saia de lá no fim do dia com aquela sensação de quero mais e coma barato naqueles restaurantes do Quartier Latin com os gregos quebrando pratos aos seus pés enquanto você passeia despreocupadamente; coma um crepe de Nutella em Montmartre depois de passar horas (se der) contemplando a cidade das escadarias da Sacre Coeur.

Ou seja, viva sua primeira vez em Paris como verdadeiro turista. Porque qualquer pessoa com juízo sabe que Paris é cidade para ir duas, três ou mais vezes. Desde que o tempo e o bolso o permitam.

Cumprido o ritual da primeira ida, aí sim, coloque o livro em questão na sua bagagem para a próxima viagem a Paris. Ele conta a história da capital francesa, desde os tempos dos gauleses até os dias de hoje a partir das suas estações de metrô. Sugiro que o leve para a viagem, mas eu mesmo o li aqui em casa, sem qualquer conexão com uma viagem próxima e adorei.

Primeiro porque encontrei mais uma justificativa para voltar à cidade (como se isso fosse necessário) e depois porque como adoro história e suas curiosidades, saber que o Campo de Marte, aquele mesmo em frente à Torre, tem esse nome porque foi neste local que há cerca de 2000 anos os romanos dizimaram a resistência gaulesa e pavimentaram a expansão do Império de Júlio César na direção da Grã Bretanha é informação importante que será usada em uma próxima conversa com amigos em torno de um Bordeaux ou mesmo de um Carmenére sul americano.

Ou ainda, descobrir que no mesmo local onde está erguida a imponente Notre Dame os antigos druidas haviam erigido um templo para homenagear uma de suas divindades e que os moradores de toda a região para lá se deslocavam para agradecer uma colheita satisfatória ou pedir proteção nos anos de dificuldade. Ou seja, que aquele é um lugar de peregrinação religiosa há tanto tempo, é ou não é interessante?

Tudo isto faz com que Paris se apresente com outra feição, menos coquete, talvez, mas ainda assim muito divertida. A cada parada, a cada estação de metrô, o leitor é convidado a olhar as ruas de Paris de outra perspectiva.

Seja revendo o famoso Saint-Germain de Prés e entendendo as grandes intervenções que o barão Haussman comandou e que transformaram a cidade no século XIX dando-lhe os bulevares e praças que tanto nos apaixonam, seja revisitando a importância dos acontecimentos na Bastilha, dos anos napoleônicos dos Invalides, das movimentações políticas na praça do Hôtel de Ville ou chegando ao século XXI na estação de La Defénse, com os prédios modernosos desta Paris mais recente.

Não precisa seguir ordem cronológica, geográfica ou numérica. Siga o seu coração e o seu interesse pela história parisiense. Talvez você vá descobrir que aquela calçada, aquele resto de muralha, aquela fonte, aquela estátua ou aquele museu que na última ida a Paris você não notou ou não deu importância tem um valor todo especial.

Valor que o livro de Loránt Deutsch vai revelar e um convite para mais uma viagem à França.

sexta-feira, 10 de maio de 2013

Ao Sul, Luanda.



A África ao sul do Saara não é destino frequente para brasileiros. Verdade que depois da Copa da África do Sul algumas pessoas se interessaram em se aventurar por aquelas bandas, mas os países da África onde se fala o português continuaram fora da lista dos mais visitados. Em regra quem vai a Angola, Moçambique, Cabo Verde ou Guiné Bissau vai a trabalho.
Estou no meio do caminho. Fui a Maputo a passeio e, depois, fui a Luanda a trabalho, a convite do UNICEF, fazer uma palestra sobre direitos da criança e do adolescente no Parlamento Angolano.

Na minha breve estada por lá, quatro ou cinco dias, pude ter uma noção da beleza de São Paulo de Luanda, da ilha Luanda e da baia de Mussolu, de onde partiam navios e mais navios traficando a mão de obra que durante quase trezentos anos serviram de base para a economia e o desenvolvimento do Brasil e do Império Português.

Digo uma noção porque a cidade a que fui apresentado era um verdadeiro canteiro de obras. Não se conseguia olhar para o lado sem se deparar com um tapume, uma grua, caminhões e montes de entulho a sujar e enfeiar uma cidade que tem tudo para ser muito agradável ao olhar.
Claro que dava para perceber a disposição tão comum nas cidades portuárias colonizadas pelos lusitanos, organizada em alta e baixa (Lisboa, Salvador da Bahia e Maputo também têm as suas). Enquanto na primeira estavam os casarios, as principais igrejas e a vida social, na cidade baixa ficavam o porto, armazéns, estaleiros e o grosso das atividades econômicas.

Mas não consegui ver a bela paisagem que os sites e revistas que promovem a cidade nos apresentam – a foto que abre este post tirei do site www.angolabelazebelo.com – por conta da poeira e do barulho incessante dos milhares de angolanos e chineses trabalhando de sol a sol na construção de mais um prédio, mais uma rodovia ou do aeroporto. Luanda estava fechada para reformas.
Quase tão desconhecida quanto a capital angolana, pelo menos para a maioria dos brasileiros, é a qualidade da literatura portuguesa que se produz em África. Tirando o conhecido Mia Couto, frequentador da FLIP e outras feiras literárias no Brasil, pouco sabemos do que se tem escrito naquele continente. E foi ansiando conhecer melhor esta produção que comprei o livro “Ao Sul, o Sombreiro”, do angolano Pepetela.

O livro é um romance histórico que retrata os anos iniciais da colonização portuguesa no continente africano enquanto narra as idas e vindas do Capitão Mor, Governador Interino de Luanda e conquistador de Benguela, Manuel Cerveira Pereira e sua busca pelo ouro e pela prata que o redimiriam perante a Corte e o tornariam insuportavelmente rico.
O autor também conta a estória de Carlos Rocha – filho de um mestiço que supostamente seria neto de Diogo Cão – e sua tentativa de fugir da escravidão que o ameaçava desde quando o pai, tendo perdido tudo que tinha para a bebida, resolveu vende-lo no próximo navio negreiro que partisse com destino ao Brasil.

As duas estórias se entrelaçam quando Carlos conhece e incorpora ao seu grupo Andrew Battel, um aventureiro inglês que havia desertado do exército do Capitão Mor e, temendo seu destino caso fosse capturado, também empreende uma fuga para o interior, estabelecendo relações com vários potentados locais. Depois de se juntarem a um grupo de jagas – ferozes guerreiros de dentes afiados – a trupe segue em direção ao sul para tentar uma embarcação que possa ajudar a fuga do kingreje, como Battel era chamado pelos africanos.
Enquanto isto, Manuel Cerveira Pereira, depois de muitas aventuras e desventuras, segue para o sul atrás das terras onde ouro e prata poderiam ser facilmente encontrados e que, segundo as informações obtidas, ficariam ao sul de Luanda, depois da serra com formato de um sombreiro. Sua busca vai torna-lo conquistador de Benguela, seu governador e, por pouco, não cobra como preço a sua própria vida, depois que alguns dos colonos e soldados que o acompanhavam se amotinam e o põem para correr da nova colônia. Também vai coloca-lo frente a frente com Carlos Rocha e o inglês.

O romance nos permite conhecer o esforço – às vezes ridículo – de transplantar para a nascente colônia as estruturas de poder e as disputas de interesse que consumiam a corte portuguesa. As figuras do juiz, do capitão mor, do governador que nunca chegava, dos padres da Companhia de Jesus ou do Bispo de São Salvador do Kongo, a quem a paróquia de Luanda estava jurisdicionada, assumem uma perspectiva para lá de interessante quando olhada desde a precariedade das condições que a colônia oferecia e da pouca importância que os ngolas e sobas africanos davam aos rapapés e salamaleques da burocracia ibérica.
O  estranhamento que os portugueses experimentam ao se confrontarem com culturas e com racionalidades completamente diferentes das suas (como a dificuldade de entender porque em muitas das nações africanas o sucessor do “rei” era o filho mais velho de sua irmã mais velha e não o seu filho mais velho) e a difícil adaptação às condições climáticas e aos hábitos alimentares do lugar são elementos a dar cor ao romance.

Interessante que da parte dos africanos havia igual estranhamento do modo como os portugueses se organizavam e viviam. O conceito de pátria, por exemplo, era absolutamente incompreensível, mesmo para aqueles africanos que por uma ou outra razão foram “civilizados” pelos europeus chegantes. A própria lógica civilizatória, baseada na propagação do evangelho cristão, era ininteligível para os locais, assim como os hábitos e regras daquele arremedo de sociedade que se formava nos assentamentos europeus que começavam a aparecer na costa africana e às margens de rios mais importantes como o Kongo e o Kwanza.
O livro de Pepetela é um abrir de janelas para melhor perceber a África, nossa história comum e a complexidade das relações entre nossos continentes. Não digo que me trouxe respostas – até porque não era esse o propósito do autor, tão pouco o meu – mas me deixou com tantas questões que me instigaram a ler mais sobre Angola e sobre a África que fala português.

Terminei o livro com a mesma sensação que deixei Luanda: em construção. Depois de ler Pepetela restou a convicção de que preciso voltar a Angola e que preciso mais da literatura africana.

sexta-feira, 3 de maio de 2013

Cemitério de livros... cemitério de almas?



Barcelona é protagonista de uma das trilogias (li em algum lugar que será uma tetralogia) de Carlos Ruiz Zafón (A Sombra do Vento, O Jogo do Anjo, O Prisioneiro do Céu) que, entre outras coisas, conta a hitória da família Sempere: das suas relações com o universo dos livros, suas outras paixões mundanas e das transformações que a Espanha e a Catalunha sofreram na primeira metade do Século XX.
Sendo mercadores e apaixonados por livros, os Sempere materializam este seu universo particular no tal Cemitério dos Livros Esquecidos ao qual o jovem Daniel é apresentado por seu pai e lugar onde vai encontrar e ser encontrado pelo livro A Sombra do Vento.

É a partir da leitura desse livro e da busca pelo seu autor, Julián Carax, que somos apresentados ao mundo de personagens quase reais e de situações quase surreais que são a tônica do jogo que Zafón propõe para seus leitores por toda a trilogia, seja voltando (em O Jogo do Anjo), seja se adiantando no tempo (O Prisioneiro do Céu), sem que isto nos obrigue uma leitura cronológica.

Em todos os três livros a Barcelona que o autor nos apresenta é uma cidade gris. Na Catalunha de Zafón os dias são quase sempre nublados ou chuvosos; as noites estão sempre envoltas em névoas e brumas; a paisagem é quase sempre cinza, assim como são as roupas, as pessoas e os sentimentos que as envolve.  Mas esses tons não fazem a leitura difícil ou sacrificante. Pelo contrário.
Nos três livros, que li de maneira perturbadoramente ávida, a cidade-personagem é o reflexo de uma Espanha dividida por uma guerra fratricida que apartou amigos e famílias, produzindo mágoas secretas e verdades inconfessáveis capazes de contaminar as relações e corromper sentimentos. Logo, é também uma Barcelona opressora.

Não só por conta dos ressentimentos e dos sentimentos reprimidos, mas também por conta da repressão da ditadura franquista, simbolizada, ao longo de toda a trilogia, pela onipresença do Castelo de Montjuic. Prisão política, central da inteligência do regime e lugar onde os torturadores de plantão davam vazão ao sadismo de suas vidas perturbadas. Um cemitério de corpos e de almas. O Montjuic de Zafón é a antessala do inferno ou, para algumas personagens, o próprio inferno.
Essa Barcelona eu não encontrei!

Claro que o movimento separatista catalão está presente a cada esquina, em cada pichação de parede e em cada manifestação política, mas não me passou uma sensação de movimento rancoroso. Pareceu mais a celebração de sua identidade.
Também me parece que ao caminhar pelas ruelas da Ciutad Vella ainda seja possível observar o indecifrável Fermín Romero, com seus ternos gastos e folgados, se esgueirando pelas sombras e becos do bairro gótico, temendo um encontro com seu passado ou com outro algoz, talvez real e físico, talvez sensorial e imaginário. Mas há que dar cordas à imaginação.

Exceto em Zafón, Barcelona é para mim sinônimo de luz, cores e diversão.
É o ir e vir descontraído das pessoas em suas ramblas, do grupo de tiozinhos jogando bocha nas areias da praia nos meses de inverno ou dos bares da Barceloneta fervilhando de animação enquanto acompanhamos o confronto entre o Barça e o Espanyol. São as cores das barracas de frutas no Mercat de La Boqueria, os muitos barcos parados nas suas marinas ou as formas inusitadas da arquitetura de Gaudí.

É sujar a roupa de sorvete durante um o passeio nas trilhas arborizadas do Parc Guel ou fingir-se conhecedor de vinhos perante um grupo de amigos num jantar no tradicional Botafumero ou no Cangrejo Loco. É visitar o museu da cidade ou tentar entender o Catalão nas placas de trânsito. É descobrir que o licor 43 se toma “on the rocks” e que a rambla do mar é perfeita para uma corrida no fim da tarde.
Não satisfeito com tantas impressões favoráveis sobre a cidade, resolvi enfrentar o cemitério de almas de Zafón! Saí do hotel e depois de uma breve caminhada tomei o metrô. Saltei na estação Paral-lel, ali se faz baldeação com o funicular que nos leva até a metade do Montjuic. De lá, por mais 4 ou 5 euros, pode-se tomar o teleférico que nos leva até as portas do castelo. Também dá para ir de carro ou mesmo a pé, mas de teleférico é muito interessante.

Mas não é aquele teleférico (El transbordador aereo de Barcelona) em que o nosso herói briga com o malvado policial Javier Fumero, que como Daniel, se dedica a encontrar o autor do livro. Este liga o Montjuic até ao porto e ainda está lá, bem a vista, só para contradizer minha impressão de que pouco existe dos livros de Zafón na metrópole catalã. Também lá está um cemitério – este de pessoas e oficial – que também não se percebe ofuscado pela vista que se descortina.
Do Castelo, hoje um belo museu, se tem uma vista maravilhosa do porto, da praia e da cidade. O morro, que em 1992 foi transformado no centro das atividades esportivas das Olimpíadas abriga um sem número de museus, equipamentos esportivos e atrativos culturais. Lá embaixo se estende a capital da cultura catalã com suas amplas avenidas, a Coluna de Colón, o Palau Nacional e a interminável Sagrada Família.

Ali circulam milhões de pessoas simpáticas e atenciosas que fazem de Barcelona uma cidade cheia de vida e de belezas. Milhões de pessoas que provavelmente ainda não descobriram que por trás de uma porta perdida no centro da cidade, em uma rua talvez cinza e oculta na penumbra dos dias de inverno, se esconde um cemitério de livros e um universo de paixões que só a pena afiada de Carlos Ruiz Zafón consegue fazer viver.