sexta-feira, 3 de maio de 2013

Cemitério de livros... cemitério de almas?



Barcelona é protagonista de uma das trilogias (li em algum lugar que será uma tetralogia) de Carlos Ruiz Zafón (A Sombra do Vento, O Jogo do Anjo, O Prisioneiro do Céu) que, entre outras coisas, conta a hitória da família Sempere: das suas relações com o universo dos livros, suas outras paixões mundanas e das transformações que a Espanha e a Catalunha sofreram na primeira metade do Século XX.
Sendo mercadores e apaixonados por livros, os Sempere materializam este seu universo particular no tal Cemitério dos Livros Esquecidos ao qual o jovem Daniel é apresentado por seu pai e lugar onde vai encontrar e ser encontrado pelo livro A Sombra do Vento.

É a partir da leitura desse livro e da busca pelo seu autor, Julián Carax, que somos apresentados ao mundo de personagens quase reais e de situações quase surreais que são a tônica do jogo que Zafón propõe para seus leitores por toda a trilogia, seja voltando (em O Jogo do Anjo), seja se adiantando no tempo (O Prisioneiro do Céu), sem que isto nos obrigue uma leitura cronológica.

Em todos os três livros a Barcelona que o autor nos apresenta é uma cidade gris. Na Catalunha de Zafón os dias são quase sempre nublados ou chuvosos; as noites estão sempre envoltas em névoas e brumas; a paisagem é quase sempre cinza, assim como são as roupas, as pessoas e os sentimentos que as envolve.  Mas esses tons não fazem a leitura difícil ou sacrificante. Pelo contrário.
Nos três livros, que li de maneira perturbadoramente ávida, a cidade-personagem é o reflexo de uma Espanha dividida por uma guerra fratricida que apartou amigos e famílias, produzindo mágoas secretas e verdades inconfessáveis capazes de contaminar as relações e corromper sentimentos. Logo, é também uma Barcelona opressora.

Não só por conta dos ressentimentos e dos sentimentos reprimidos, mas também por conta da repressão da ditadura franquista, simbolizada, ao longo de toda a trilogia, pela onipresença do Castelo de Montjuic. Prisão política, central da inteligência do regime e lugar onde os torturadores de plantão davam vazão ao sadismo de suas vidas perturbadas. Um cemitério de corpos e de almas. O Montjuic de Zafón é a antessala do inferno ou, para algumas personagens, o próprio inferno.
Essa Barcelona eu não encontrei!

Claro que o movimento separatista catalão está presente a cada esquina, em cada pichação de parede e em cada manifestação política, mas não me passou uma sensação de movimento rancoroso. Pareceu mais a celebração de sua identidade.
Também me parece que ao caminhar pelas ruelas da Ciutad Vella ainda seja possível observar o indecifrável Fermín Romero, com seus ternos gastos e folgados, se esgueirando pelas sombras e becos do bairro gótico, temendo um encontro com seu passado ou com outro algoz, talvez real e físico, talvez sensorial e imaginário. Mas há que dar cordas à imaginação.

Exceto em Zafón, Barcelona é para mim sinônimo de luz, cores e diversão.
É o ir e vir descontraído das pessoas em suas ramblas, do grupo de tiozinhos jogando bocha nas areias da praia nos meses de inverno ou dos bares da Barceloneta fervilhando de animação enquanto acompanhamos o confronto entre o Barça e o Espanyol. São as cores das barracas de frutas no Mercat de La Boqueria, os muitos barcos parados nas suas marinas ou as formas inusitadas da arquitetura de Gaudí.

É sujar a roupa de sorvete durante um o passeio nas trilhas arborizadas do Parc Guel ou fingir-se conhecedor de vinhos perante um grupo de amigos num jantar no tradicional Botafumero ou no Cangrejo Loco. É visitar o museu da cidade ou tentar entender o Catalão nas placas de trânsito. É descobrir que o licor 43 se toma “on the rocks” e que a rambla do mar é perfeita para uma corrida no fim da tarde.
Não satisfeito com tantas impressões favoráveis sobre a cidade, resolvi enfrentar o cemitério de almas de Zafón! Saí do hotel e depois de uma breve caminhada tomei o metrô. Saltei na estação Paral-lel, ali se faz baldeação com o funicular que nos leva até a metade do Montjuic. De lá, por mais 4 ou 5 euros, pode-se tomar o teleférico que nos leva até as portas do castelo. Também dá para ir de carro ou mesmo a pé, mas de teleférico é muito interessante.

Mas não é aquele teleférico (El transbordador aereo de Barcelona) em que o nosso herói briga com o malvado policial Javier Fumero, que como Daniel, se dedica a encontrar o autor do livro. Este liga o Montjuic até ao porto e ainda está lá, bem a vista, só para contradizer minha impressão de que pouco existe dos livros de Zafón na metrópole catalã. Também lá está um cemitério – este de pessoas e oficial – que também não se percebe ofuscado pela vista que se descortina.
Do Castelo, hoje um belo museu, se tem uma vista maravilhosa do porto, da praia e da cidade. O morro, que em 1992 foi transformado no centro das atividades esportivas das Olimpíadas abriga um sem número de museus, equipamentos esportivos e atrativos culturais. Lá embaixo se estende a capital da cultura catalã com suas amplas avenidas, a Coluna de Colón, o Palau Nacional e a interminável Sagrada Família.

Ali circulam milhões de pessoas simpáticas e atenciosas que fazem de Barcelona uma cidade cheia de vida e de belezas. Milhões de pessoas que provavelmente ainda não descobriram que por trás de uma porta perdida no centro da cidade, em uma rua talvez cinza e oculta na penumbra dos dias de inverno, se esconde um cemitério de livros e um universo de paixões que só a pena afiada de Carlos Ruiz Zafón consegue fazer viver.

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