É curioso como ler e viajar provocam associações
aparentemente despropositadas ou sem conexão. Às vezes uma personagem ou o
cenário de um conto ou romance nos levam a lugares que, ainda que nunca
tenhamos estado, parecem fazer parte das nossas lembranças. Mais curioso ainda é,
quando do nada, onde menos esperamos, aquela pessoa ou aquela paisagem surge,
nos remetendo à memória de lugares nunca visitados e de pessoas nunca vistas.
Recentemente li O Príncipe da Neblina, primeiro livro de Carlos Zafón, dos que
li, ambientado fora da sua querida Barcelona. Nele, o autor, conta a estória de
Max Carver, um adolescente inglês que por conta do trabalho do pai – que é um relojoeiro
– se vê obrigado a ir morar em uma pequena vila de pescadores no litoral da
Inglaterra.
Ali, aproveitando as férias de verão,
passeando pela praia, andando de bicicleta e descobrindo a nova cidade, Max
trava amizade com Roland, jovem morador local, que tem mais ou menos a sua
idade e que em conjunto com sua irmã, Alicia Craver, formam o trio em torno do
qual viveremos aventuras, bem dentro do realismo fantástico de outras obras do
autor.
O Príncipe da Neblina é uma personagem misteriosa, que surge
e desaparece nas brumas, quase sempre associada à presença do circo ou de um
daqueles parques de diversão, com feiras de variedades, pipoca, roda gigante,
carrosséis, shows da mulher barbada e coisas do gênero. Em uma hora ele é o
apresentador do circo, noutra um adivinho que lê o futuro das pessoas ou o
proprietário do empreendimento. Independentemente, ele está ali sempre na
neblina, surgindo e desaparecendo ao sabor das promessas feitas e de dívidas a
serem cobradas.
O príncipe também aparece naquela pacata e bucólica vila de
pescadores, junto com um intrigante cemitério de estátuas nos fundos da casa
dos Carver, para cobrar uma dívida de muitos anos atrás. Dívida esta
que, juntos com os adolescentes e com as informações tiradas a fórceps do avô
de Roland, vamos descobrindo ao longo do caminho, sempre com o circo, o
cemitério e os relógios reaparecendo.
O livro, bastante juvenil, é curto, direto e prende o leitor
neste esforço de ajudar as personagens principais a descobrir o que quer o
príncipe da neblina e a escapar de suas ameaças, de modo a só parar de lê-lo ao
terminar. Apesar disto, dos livros que li do autor, achei o mais fraquinho.
Mas toda essa estória me veio à lembrança quando ao fazer
uma curva em uma pequena estrada no sudoeste do País de Gales me deparei com
aquela paisagem. Ali estava a vila de pescadores que havia imaginado quando li
o livro, lugar que já conhecia sem nunca ter ido!!
A beleza singela da praia não muito grande nem muito larga,
especialmente se comparada com os padrões do litoral do nosso Ceará; as
casinhas, muito próximas uma das outras, de frente para o mar e acompanhando a
estradinha de corta a vila; as pastagens das propriedades no entorno, que fazem
com que o verde praticamente se junte ao azul do mar provocando um contraste de
grande beleza, em algumas delas os carneiros estão pastando mansamente à beira
mar; e, os ventos frios que sopravam, eram absurdamente familiares.
Tive a sensação de poder assistir, de camarote, todo o
desenrolar do livro de Zafón bem ali, à minha frente, naquela pequena vila à
beira mar no litoral do sudoeste do País de Gales. Seria a perfeita a situação
de “dejá vu”, se nas imediações existisse um velho farol e um cemitério com
estátuas completando o cenário (eles estavam um pouco mais adiante).
Tínhamos passado por Cardiff – cidade muito simpática, cujo
castelo merece uma visita – e seguíamos na direção de Saint Davis, reconhecida
como a menor cidade da Grã Bretanha. A cidadezinha no extremo oeste de Gales abriga
uma catedral e um mosteiro que foram fundados pelo próprio santo há mais de mil
anos e que impressiona pelo seu porte e sua beleza. O mosteiro já está em
ruínas, mas a catedral funciona regularmente e o seu interior é grande beleza.
Aos que um dia aceitarem o convite de ir por lá, não deixem
de reparar o teto de madeira trabalhada da nave e no Cristo de madeira
que o ornamenta, verdadeiramente primoroso.
Depois de visitar o legado de Saint Davis seguimos para
Fishgard onde deveríamos tomar o ferry para atravessar para a Irlanda, a
caminho de Dublin. Porém, por conta de erro de planejamento, quando chegamos ao
porto a barca já havia partido e a próxima só sairia 12 horas depois.
Fazer o que? Compramos uma passagem para um ferry que sairia
horas depois de Holyhead no norte do País de Gales e nos obrigamos a fazer uma
viagem de 170 milhas por paisagens de grande beleza, sempre ao longo da costa
ocidental da ilha britânica. Apesar do stress e do cansaço, a viagem forçada nos
permitiu conhecer o país de leste a oeste e de sul a norte, até que no fim do
dia chegamos ao nosso destino na capital irlandesa.
Durante todo o percurso, aqui e ali outras vilas de
pescadores apareceriam – algumas talvez até reprodução mais fidedigna daquela
imaginada pelo autor – mas a primeira foi a que causou esta sensação de viajar
com livros. Interessante que nem este livro de Zafón, nem o País de Gales devem estar nas listas dos mais cotados de leitores e viajantes mas, havendo a oportunidade, não deixem nem de ler o Príncipe da Neblina, nem de conhecer o País de Gales. Vale a pena!
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