A África ao sul do Saara não é destino frequente para
brasileiros. Verdade que depois da Copa da África do Sul algumas pessoas se
interessaram em se aventurar por aquelas bandas, mas os países da África onde se
fala o português continuaram fora da lista dos mais visitados. Em regra quem
vai a Angola, Moçambique, Cabo Verde ou Guiné Bissau vai a trabalho.
Estou no meio do caminho. Fui a Maputo a passeio e, depois,
fui a Luanda a trabalho, a convite do UNICEF, fazer uma palestra sobre direitos
da criança e do adolescente no Parlamento Angolano.Na minha breve estada por lá, quatro ou cinco dias, pude ter uma noção da beleza de São Paulo de Luanda, da ilha Luanda e da baia de Mussolu, de onde partiam navios e mais navios traficando a mão de obra que durante quase trezentos anos serviram de base para a economia e o desenvolvimento do Brasil e do Império Português.
Digo uma noção porque a cidade a que fui apresentado era um
verdadeiro canteiro de obras. Não se conseguia olhar para o lado sem se deparar
com um tapume, uma grua, caminhões e montes de entulho a sujar e enfeiar uma
cidade que tem tudo para ser muito agradável ao olhar.
Claro que dava para perceber a disposição tão comum nas
cidades portuárias colonizadas pelos lusitanos, organizada em alta e baixa
(Lisboa, Salvador da Bahia e Maputo também têm as suas). Enquanto na primeira
estavam os casarios, as principais igrejas e a vida social, na cidade baixa ficavam
o porto, armazéns, estaleiros e o grosso das atividades econômicas.
Mas não consegui ver a bela paisagem que os sites e revistas
que promovem a cidade nos apresentam – a foto que abre este post tirei do site
www.angolabelazebelo.com – por conta da poeira e do barulho incessante dos
milhares de angolanos e chineses trabalhando de sol a sol na construção de mais
um prédio, mais uma rodovia ou do aeroporto. Luanda estava fechada para
reformas.
Quase tão desconhecida quanto a capital angolana, pelo menos
para a maioria dos brasileiros, é a qualidade da literatura portuguesa que se
produz em África. Tirando o conhecido Mia Couto, frequentador da FLIP e outras
feiras literárias no Brasil, pouco sabemos do que se tem escrito naquele continente. E
foi ansiando conhecer melhor esta produção que comprei o livro “Ao Sul, o
Sombreiro”, do angolano Pepetela.
O livro é um romance histórico que retrata os anos iniciais
da colonização portuguesa no continente africano enquanto narra as idas e
vindas do Capitão Mor, Governador Interino de Luanda e conquistador de Benguela,
Manuel Cerveira Pereira e sua busca pelo ouro e pela prata que o redimiriam
perante a Corte e o tornariam insuportavelmente rico.
O autor também conta a estória de Carlos Rocha – filho de um
mestiço que supostamente seria neto de Diogo Cão – e sua tentativa de fugir da
escravidão que o ameaçava desde quando o pai, tendo perdido tudo que tinha para
a bebida, resolveu vende-lo no próximo navio negreiro que partisse com destino
ao Brasil.
As duas estórias se entrelaçam quando Carlos conhece e
incorpora ao seu grupo Andrew Battel, um aventureiro inglês que havia desertado
do exército do Capitão Mor e, temendo seu destino caso fosse capturado, também
empreende uma fuga para o interior, estabelecendo relações com vários
potentados locais. Depois de se juntarem a um grupo de jagas – ferozes
guerreiros de dentes afiados – a trupe segue em direção ao sul para tentar uma
embarcação que possa ajudar a fuga do kingreje, como Battel era chamado pelos
africanos.
Enquanto isto, Manuel Cerveira Pereira, depois de muitas aventuras
e desventuras, segue para o sul atrás das terras onde ouro e prata poderiam ser
facilmente encontrados e que, segundo as informações obtidas, ficariam ao sul
de Luanda, depois da serra com formato de um sombreiro. Sua busca vai torna-lo
conquistador de Benguela, seu governador e, por pouco, não cobra como preço a
sua própria vida, depois que alguns dos colonos e soldados que o acompanhavam
se amotinam e o põem para correr da nova colônia. Também vai coloca-lo frente a
frente com Carlos Rocha e o inglês.
O romance nos permite conhecer o esforço – às vezes ridículo
– de transplantar para a nascente colônia as estruturas de poder e as disputas
de interesse que consumiam a corte portuguesa. As figuras do juiz, do capitão
mor, do governador que nunca chegava, dos padres da Companhia de Jesus ou do
Bispo de São Salvador do Kongo, a quem a paróquia de Luanda estava jurisdicionada,
assumem uma perspectiva para lá de interessante quando olhada desde a
precariedade das condições que a colônia oferecia e da pouca importância que os
ngolas e sobas africanos davam aos rapapés e salamaleques da burocracia ibérica.
O estranhamento que os portugueses experimentam ao se
confrontarem com culturas e com racionalidades completamente diferentes das
suas (como a dificuldade de entender porque em muitas das nações africanas o
sucessor do “rei” era o filho mais velho de sua irmã mais velha e não o seu
filho mais velho) e a difícil adaptação às condições climáticas e aos
hábitos alimentares do lugar são elementos a dar cor ao romance.
Interessante que da parte dos africanos havia
igual estranhamento do modo como os portugueses se organizavam e viviam.
O conceito de pátria, por exemplo, era absolutamente incompreensível, mesmo
para aqueles africanos que por uma ou outra razão foram “civilizados” pelos
europeus chegantes. A própria lógica civilizatória, baseada na propagação do
evangelho cristão, era ininteligível para os locais, assim como os hábitos e
regras daquele arremedo de sociedade que se formava nos assentamentos europeus
que começavam a aparecer na costa africana e às margens de rios mais
importantes como o Kongo e o Kwanza.
O livro de Pepetela é um abrir de janelas para melhor
perceber a África, nossa história comum e a complexidade das relações entre
nossos continentes. Não digo que me trouxe respostas – até porque não era esse
o propósito do autor, tão pouco o meu – mas me deixou com tantas questões que
me instigaram a ler mais sobre Angola e sobre a África que fala português.
Terminei o livro com a mesma sensação que deixei Luanda: em
construção. Depois de ler Pepetela restou a convicção de que preciso voltar a Angola e que preciso mais da literatura africana.
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